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Aracy de Almeida, uma dama encantada

Redação Folha Vitória

São Paulo - O ano termina e Aracy de Almeida (1914-1988) não foi devidamente homenageada por conta do centenário de seu nascimento. Cantora, jurada de programa de auditório, apreciadora de música clássica e de leituras de psicanálise, Araci Telles de Almeida (mais tarde, adotou Aracy porque, com Y, "fica mais bacana") deixou como herança uma série de particularidades que a tornaram única.

Primeiro - e talvez o mais importante legado - foi dar um novo fôlego para os sambas de Noel Rosa (1910-1937) nos anos 1940 e 1950, quando, cantando o repertório do compositor, gravando discos com suas canções e exaltando sua qualidade em programas da Rádio Tupi, comandados por Almirante, foi responsável pela redescoberta de Noel pelo grande público. Aracy, no entanto, era também um mulher culta, facetas de sua personalidade apresentadas no livro Aracy de Almeida - Não Tem Tradução (Veneta), que o jornalista Eduardo Logullo lança na noite desta terça-feira, 16, no restaurante Spot.

Não se trata de uma biografia ou mesmo de uma análise - Logullo decidiu construir a figura da sambista por meio de frases ditas por ela ou sobre ela, ao longo de sua carreira. Um quebra-cabeça em que as peças unidas buscam dar a mais próxima noção da importância da cidadã e artista Aracy de Almeida.

"Como resumir a cantora libertária do ditongo entupido, do nasal magnífico que até Mario de Andrade citou em palestra?", questiona o jornalista, na introdução do livro. "Aracy de Almeida sublimou/elevou a partícula ‘ão’ e as emissões vocálicas. E continuou afinada-fanhosa-assumida-desafiadora pelo resto da vida. O elo perdido da elegância da periferia. O norte da zona soul carioca. Ela poderia ter dito: eu 'soul' o samba."

Nascida no bairro do Encantado, subúrbio carioca, era filha de uma dona de casa e de um chefe de trens da Central do Brasil. Essas informações explicam por que foi depois conhecida pelas alcunhas de Dama da Central e Dama do Encantado. Aracy jamais negou as raízes, mesmo depois de conhecer e se confundir com a malandragem do Rio de Janeiro.

"Quem a batizou na esbórnia da Lapa foi Noel Rosa", observa Logullo, ainda na introdução. "O samba de Noel era repleto de nuances e harmonias, bem diferente das composições dos sambistas surgidos na casa da legendária quituteira/macumbeira/sambista Tia Ciata - como Sinhô, Assumano e Donga. Noel era um lírico do Mangue, das boêmias de Vila Isabel, da cidade urbanizada."

E Aracy surpreendia por revelar, com voz nasalada mas afinada, os labirintos daquelas gingas radicais, gravando suas canções desde que o conheceu no dia 17 de agosto de 1932, na Rádio Educadora do Rio. E, se já bastaria o fato de ter revigorado a obra de Noel para ocupar um lugar privilegiado na MPB, Aracy gravou ainda canções de Ary Barroso, Ismael Silva, Antonio Maria, Wilson Batista, Assis Valente e muitos outros. Eternizou-se, na era do rádio, com o slogan artístico de "O Samba em Pessoa".

As diversas frases selecionadas por Logullo revelam como Aracy foi uma mulher moderna, à frente de seu tempo. "Incorporou a fala das ruas como dialeto pessoal e intransferível, mantendo o discurso que, até sua morte em 1988, seria único. Sem tradução. Destoava dos padrões: palavrões, gírias, figuras de linguagem, apelidos, chacotas, ironias", analisa o autor.

Essa peculiar dicção surpreendia ao também revelar a mulher culta, que morava em uma casa, no Encantado, logo transformada em lugar mítico da MPB por conta de sua decoração: as paredes eram ornadas com quadros dos amigos Aldemir Martins e Di Cavalcanti que, aliás, fez a capa do LP Aracy de Almeida: Sambas de Noel Rosa, de 1954. Sua pinacoteca particular contava ainda com obras de Antonio Bandeira, Heitor dos Prazeres, Clovis Graciliano, Djanira e Luiz Canabrava. Gostava também de criar cachorros (foram vários) e de ouvir ópera ("adoro aquela gritaria"). Citava trechos bíblicos e recitava versos simbolistas.

Mas, acima de tudo, a música. Segundo levantamento de Paulo Cesar de Andrade, Aracy deixou uma discografia que conta com 390 registros em 78 rpm, 45 rpm e 33 rpm, entre composições inéditas e regravações. Mestre da boemia, dos bordões, das notas zero em programas de calouro, Aracy não foi uma autêntica matusquela, mas sim uma figura de fino trato.

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