Reforma do ICMS, para quê e para quem?

Ana Paula Vescovi*

À parte a elevada carga tributária, há graves distorções no sistema tributário brasileiro: complexidade; cumulatividade; alto custo de recuperação de créditos; competição fiscal desordenada e insegurança jurídica; tributação excessiva em produtos específicos; elevados incentivos à elisão e, por consequência, elevados custos de transação para contribuintes e fiscos.

Por esses e outros fatores considera-se a Reforma Tributária como central para compor a Agenda de reformas estruturais, capaz de acelerar o potencial de crescimento da economia brasileira. Desde então, várias iniciativas foram apresentadas e, algumas, adotadas pelo governo federal: PEC 175 (1995); relatório Mussa Demes (à PEC 175, 1999), e PEC 233 (2008). Foi aprovada a Emenda Constitucional 42, de 2003, viabilizou, por exemplo, a mudança do PIS/CONFINS.

Mas o escopo das propostas enviadas ao Congresso sempre foi muito amplo, o que inviabilizava a obtenção de apoio da maioria absoluta. Assim, o governo Dilma destacou a desoneração da folha de salários e a reforma do ICMS, e as adotou como prioridade, até por conta das pressões do setor industrial frente às adversidades da crise econômica. A reforma do ICMS, defendida pela FIESP como 70% da reforma tributária necessária, é de particular interesse para o Espírito Santo. Com ela, o estado perde mais de R$ 2 bilhões por ano, segundo contas do governo federal.

Segundo o diagnóstico do governo, um grande número de problemas do ICMS tem a ver com a forma de cobrança desse imposto nas operações interestaduais. Nestas transações, uma parte do ICMS é devido ao Estado de origem da mercadoria (em regra, correspondente à alíquota de 12%) e uma parte ao Estado de destino. Nas vendas dos Estados do Sul e Sudeste (exceto Espírito Santo) para os demais Estados, a alíquota no Estado de origem é 7%. A diferença restante para a alíquota final fica no estado de destino.

Um dos problemas que essa estrutura gera é a dificuldade no ressarcimento dos créditos relativos ao ICMS em operações interestaduais que envolvem operações imunes à tributação, como a exportação, sob o argumento de que teriam de ressarcir um imposto que foi arrecadado em outra unidade da Federação. Esse acúmulo de créditos eleva o custo do capital e, em vários casos, tem levado o Brasil a perder investimentos para outros países.

O maior problema, no entanto, encontra-se na concessão de incentivos fiscais estaduais, através da qual o estado reduz o ICMS para atrair investimentos. A absoluta falta de coordenação na concessão de incentivos fiscais no ICMS acabou colocando os estados numa posição de reféns perante a barganha de investidores. Além disso, os estados vêm concedendo benefícios fiscais sem respaldo da Lei Complementar vigente (LC 24/1975), a qual requer aprovação unânime do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Em alguns casos, esses benefícios não tem sequer o respaldo de Lei estadual, e são concedidos mediante negociações caso a caso. Sem a devida regulação, a competição dos incentivos tem produzido uma verdadeira anarquia tributária, gerando uma enorme insegurança para os investidores.

De fato, ao fazer um investimento, uma empresa não sabe se seus concorrentes receberão benefícios que podem comprometer sua capacidade de competir e sobreviver no mercado. Essa insegurança leva os empresários a investir menos ou então a exigir um retorno mais alto dos investimentos, prejudicando os consumidores.

Hoje a insegurança atinge até mesmo as empresas que receberam incentivos e que não sabem se conseguirão mantê-los: (i) por conta de decisões judiciais reconhecendo a inconstitucionalidade dos benefícios concedidos, inclusive obrigando a cobrança retroativa dos impostos que deixaram de ser pagos; (ii) porque vários Estados não estão reconhecendo o crédito de ICMS de produtos que receberam incentivos em outras unidades da Federação.

O governo federal argumenta ainda que, especialmente no comércio atacadista, o benefício depende apenas do trânsito da mercadoria pelo Estado que concede o incentivo, o que contribui para o congestionamento da malha de transportes. Estudos empíricos , contudo, sustentam que os incentivos estaduais foram efetivos na desconcentração da atividade econômica, diante da ausência e da absoluta falta de efetividade da política de desenvolvimento regional praticada pela União. E, ademais, a competição fiscal deu contar de inibir o vertiginoso crescimento da carga tributária no Brasil.

Para atacar o problema, iniciou-se a reforma do ICMS pela Resolução 13/2012, que trata apenas de uniformizar as alíquotas interestaduais do ICMS (de 12% e 7% para 4%) nas importações. Além disso, o Supremo Tribunal Federal – STF – apresentou para audiência pública a súmula vinculante nº 69, que simplesmente declara a ilegalidade de todos os incentivos concedidos sem a unanimidade do CONFAZ. Na verdade, a súmula pretende “estimular” um acordo no CONFAZ ou no Senado Federal.

Na reforma do ICMS, que toca no tema dos incentivos fiscais, os pontos de interesse do governo federal são: a convalidação dos benefícios já concedidos; a extinção destes a partir de então; e a redução e uniformização (em 4%) das alíquotas interestaduais, de forma geral, e não apenas para bens importados. Como contrapartida, o governo federal se dispõe a compensar os estados perdedores de receitas e a instituir Fundos de Desenvolvimento Regional com governança compartilhada.

A alternativa defendida pelo governo federal terá efeitos colaterais: forte redistribuição das receitas estaduais, onde vinte estados saem ganhando o que sete estados perdem; aumento de 2 a 3 pontos percentuais de carga tributária, com viés concentrador a favor dos estados “consumidores”; custo de cerca de R$ 10 bilhões por ano  para compensar os estados perdedores, ou seja, impacto sobre o esforço fiscal da União, num momento de aumento das restrições; e concentração na União dos instrumentos de desenvolvimento regional, o que retira grande parte da autonomia dos estados.

Mas essa não é a única proposta viável. Há a opção de manter as alíquotas interestaduais diferenciadas, o que beneficia com maior atratividade as regiões onde a alíquota menor é cobrada na origem. Para isso, seria preciso reinventar o CONFAZ, e estabelecer normas para que os benefícios possam ser concedidos com o respaldo da lei, e de modo a compor mecanismo de cooperação federativa. Seria necessário, ainda, dotar o CONFAZ de uma estrutura institucional autônoma em relação ao governo federal, e aumentar o enforcement do judiciário, para penalizar os estados que agirem, a partir de então, à revelia dos demais.

Há, ainda, alternativa que não provoca a redistribuição de recursos entre os estados. Foi elaborada por Ricardo Varsano (IPEA) e adotada na PEC 175, de 1995. Trata-se da constituição, a partir da atual base, de um ICMS federativo, com uma parcela de alíquota estadual e outra, federal. Quando os estados renunciarem à sua parcela da alíquota, a fim de conceder incentivos, a União automaticamente não reconhece o crédito e cobra para si, anulando os efeitos dos incentivos. O avanço na tecnologia da informação – com o Sistema Público de Escrituração Digital – Sped, por exemplo – viabilizaria a adoção dessa proposta.

Além de simplificadora, a proposta é mais eficiente sob a ótica do fisco. A parcela federal viria em substituição de impostos indiretos federais, tais como o IPI ou o PIS/Cofins. Reside, aí, a grande dificuldade: reestruturar a base do orçamento federal, amplamente tomada por vinculação direta entre receitas e despesas (como o PIS/COFINS para a seguridade social). Há, ainda, perda de autonomia dos estados na fixação de alíquotas, que passa a seguir um padrão nacional, único aos olhos dos contribuintes.

A discussão é das mais complexas, pois envolve, de um lado, a necessidade premente do Brasil alcançar maiores ganhos de produtividade, onde o regime tributário é central. De outro lado, envolve uma questão distributiva, que nos leva à busca de uma segunda melhor alternativa, que vise à construção da solidariedade federativa e de uma federação forte e cooperativa. Isso restringe o alcance de um modelo ideal ou “ótimo” em termos de sua eficiência, mas, nem de longe, impede a sua melhoria com grande impacto positivo para o País.

Enfim, estamos diante de um dilema, onde a questão de fundo á a escolha do modelo de federalismo que queremos para o Brasil.

1. Economista, Assessora no Senado Federal, Coordenadora da Câmara de Assuntos Fiscais e de Tributação do IBEF-ES.
2 Ministério da Fazenda. Reforma Tributária. Brasília-DF: fevereiro de 2008.
3 GV-Projetos.  Impactos Socioeconômicos da Suspensão de Incentivos Fiscais.  Rio de Janeiro: setembro de 2011.
4 Isso é muito mais caro do que as compensações com a Lei Kandir que anualmente o governo federal reluta em inserir no seu orçamento. Usualmente, essas compensações alcançavam R$ 3 bilhões / ano.

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