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Especialista explica potencial medicinal da maconha reconhecido pela Anvisa

Daniel Henriques Soares Leal

Foto: Arquivo Pessoal

No último dia 8 de maio, a Anvisa publicou uma resolução no Diário Oficial da União que incluiu a maconha, entre outras substâncias, na lista das Denominações Comuns Brasileiras (DCB). Isso significa que planta em si - e não mais apenas seus componentes, Tetrahidrocannabinol (THC) e o canabidiol (CDB) - pode ser utilizada pela indústria farmacêutica para a produção de medicamentos, desde que obedecidos alguns parâmetros.

Essa foi a primeira vez que a Anvisa reconheceu que a Cannabis sativa possui potencial terapêutico. No entanto, a agência ressalta que sua inclusão da substância na lista das DCB's não significa que ela tenha sido reconhecida como planta medicinal, mas apenas que possui "potencial" para ser considerada como tal.

Para explicar um pouco melhor o que significa na prática essa resolução da Anvisa e como ela pode contribuir para o desenvolvimento da ciência e para o tratamento de determinadas doenças, o jornal online Folha Vitória entrevistou o professor de Química Farmacêutica e Farmacognosia do curso de Farmácia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), campus São Mateus, Daniel Henriques Soares Leal. 

Folha Vitória: O que significa a inclusão da Cannabis sativa na lista das Denominações Comuns Brasileiras? Já é possível classificar a maconha como planta medicinal?
Daniel Henriques Soares Leal:
Antes de mais nada, é preciso entender o que é uma Denominação Comum Brasileira ou DCB. Este é o nome oficial dado no Brasil pelo órgão federal de vigilância sanitária, no caso a Anvisa, aos chamados insumos farmacêuticos ativos, que são nada mais que substâncias químicas e outras matérias-primas com propriedades farmacológicas, ou seja, que exercem efeitos sobre um ser vivo, usadas para diagnóstico, alívio, tratamento e modificação de estados fisiológicos e patológicos. Podemos citar como exemplo os fármacos, anticorpos monoclonais, plantas medicinais, etc. A Cannabis sativa, no caso, foi oficialmente incluída como planta medicinal na lista de DCB’s em maio deste ano. Sua inclusão, como qualquer insumo listado nas DCB’s, significa que ela é considerada em caráter oficial como sendo de interesse farmacêutico. Este interesse pode abranger desde processos de produção de medicamentos até uso em materiais de divulgação, didáticos, científicos etc. Entretanto, é importante esclarecer que o fato de a Cannabis sativa ter sido incluída na lista de DCB’s de plantas medicinais não significa que o uso ou a comercialização dela tenham sido autorizados. Um exemplo disso é que cocaína e heroína, que são drogas de abuso, também possuem DCB’s como insumos farmacêuticos, mas têm seu uso proscrito, ou seja, proibido no Brasil, de acordo com a Portaria 344/98 da Anvisa. No caso da Cannabis sativa, a Portaria 344/98 a lista no grupo das plantas proscritas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas. As substâncias canabidiol (CBD) e tetraidrocanabinol (THC), ambas presentes na Cannabis sativa, também possuem DCB’s incluídas antes da própria planta. Na própria nota de divulgação da Anvisa sobre a inclusão da Cannabis sativa, esclarece-se que a medida não significa a autorização nem o reconhecimento dela como planta medicinal e sim que ela tem potencial para se tornar uma planta medicinal, se for devidamente pesquisada e estudada. Significa também que ela pode ser reconhecida e importada como planta medicinal, no caso de decisões judiciais, ou pode vir a ser utilizada como insumo de um medicamento devidamente registrado.

FV: O que é preciso ser feito para que uma planta seja considerada medicinal?
DL:
É preciso fazer uma distinção quanto ao significado do termo “planta medicinal”. Tecnicamente falando, toda planta que possui, em uma ou mais partes como folhas ou raízes, substâncias com ação farmacológica é uma planta medicinal, já que estas substâncias possuem potencial uso para tratamento de enfermidades. No entanto, tanto estas mesmas substâncias como outras presentes na planta, especialmente se ela for utilizada em grande quantidade, podem provocar intoxicações. Isso requer cuidados com o uso das plantas medicinais. Sob este aspecto, para uma planta ser classificada como medicinal, ela precisa ser estudada de acordo com protocolos científicos que envolvem, por exemplo, a identificação da espécie, a extração e a purificação das substâncias presentes nas suas partes e a investigação e comprovação de suas atividades biológicas. Popularmente falando, o termo “planta medicinal” é usado para se referir a plantas que já sejam de fato utilizadas tradicionalmente há muito tempo, seja na forma de chás, “garrafadas”, “abafados” e outros tipos de preparo. Esse conhecimento é normalmente transmitido de geração em geração, tendo-se assim as figuras dos raizeiros e dos vizinhos ou conhecidos que sempre têm estas plantas em casa e que fornecem quando pedidos. Nesse caso, nem todas as plantas classificadas como “medicinais” segundo a tradição popular foram estudadas cientificamente.

FV: Como a Anvisa utiliza a lista das DCB’s para fazer os registros dos medicamentos?
DL:
A lista das DCB’s contém os nomes oficiais das substâncias de interesse farmacêutico e é necessária tanto para a Anvisa como para fabricantes de medicamentos. Quando uma indústria pede o registro de um medicamento que ela desenvolveu e pretende comercializar, todas as substâncias presentes no produto precisam constar na lista para que o fabricante faça o pedido e a Anvisa inicie a análise, independentemente do resultado. Qualquer processo deste tipo só será analisado se todas as substâncias já constarem na lista.

FV: Como pode ser feito o uso da Cannabis sativa para a produção de medicamentos? Existe um limite estabelecido para o uso dessa planta?
DL:
A legislação sanitária, no momento, não permite que a Cannabis sativa seja importada, exportada, comercializada, manipulada e nem utilizada, isso incluindo a produção de medicamentos. O mesmo vale para qualquer substância obtida a partir dela. Isso quer dizer, por exemplo, que é proibido vender medicamentos contendo, como princípio ativo, extrato seco de folhas de Cannabis sativa ou tintura de folhas, etc. Há, no entanto, três exceções definidas para o uso da Cannabis sativa na produção de medicamentos. A primeira destas exceções diz respeito ao canabidiol. A legislação sanitária vigente autoriza a prescrição de medicamentos contendo como princípio ativo o canabidiol, desde que com prescrição médica em duas vias, sendo que uma delas fica retida no estabelecimento. Isto é o que consta na Portaria 344/98. A segunda exceção se refere à importação de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetraidrocanabinol, que podem ser importados desde que sejam para uso próprio para tratamento de saúde e mediante prescrição médica. Esta importação tem que ser feita por pessoa física. A terceira exceção estabelece um limite para o uso de Cannabis sativa e corresponde à permissão do uso de medicamentos com registro na Anvisa contendo derivados de Cannabis sativa com concentração máxima de 30 miligramas por mililitro de canabidiol e 30 miligramas por mililitro de tetraidrocanabinol. Estas são as condições vigentes no momento. Com o tempo, na medida em que novos estudos sobre propriedades medicinais da Cannabis sativa forem publicados e for aumentando a segurança quanto ao seu uso medicinal, outras substâncias com uso terapêutico poderão ser identificadas e futuramente usadas como medicamentos. A legislação, conforme é atualizada, deve acompanhar estas mudanças. Um exemplo de como funciona essa regulação é o caso do Mevatyl, o único medicamento registrado no Brasil que tem derivados de Cannabis sativa na formulação. Este medicamento é fabricado no Reino Unido e tem como princípios ativos o canabidiol (25 mg/mL) e o tetraidrocanabinol (27 mg/mL).

FV: A medida permitirá que mais medicamentos sejam desenvolvidos utilizando a maconha como matéria-prima?
DL:
Não, uma vez que a inclusão da Cannabis sativa nas DCB’s, por si só, não significa que seu uso já esteja autorizado. Como já explicado, a indústria farmacêutica, em território brasileiro, não tem permissão para importar ou manipular a Cannabis sativa a fim de desenvolver um medicamento. A permissão é somente para uso próprio em tratamento de saúde de produtos com canabidiol ou tetraidrocanabinol. Futuramente, se houver alteração na legislação vigente, pode ser que esse quadro mude. Como já dito, a inclusão nas DCB’s configura a existência de interesse farmacêutico, o qual pode futuramente levar a esse desenvolvimento. Em outros países, com suas próprias leis quanto à Cannabis sativa, o desenvolvimento de medicamentos com derivados da planta atingiu outro patamar. Além do Mevatyl, também comercializado como Sativex em outros países, já existem medicamentos com outros derivados canabinoides, como Marinol e Cesamet. Estes medicamentos, no entanto, não têm o canabidiol ou o tetraidrocanabinol como princípios ativos e, por isso, ainda não podem ser importados.

FV: Que tipo de doença pode ser combatida com medicamentos produzidos a partir da Cannabis sativa?
DL:
O Mevatyl foi aprovado aqui no Brasil para o tratamento de rigidez muscular associada à esclerose múltipla. O Marinol é indicado para tratamento de perda de apetite em pacientes com HIV e também para tratamento de náuseas e vômitos em pacientes que fazem quimioterapia. O Cesamet também é indicado neste último caso. Pacientes que sofrem com a dor da esclerose múltipla também podem ser tratados com Marinol. Além destas indicações já estabelecidas para estes medicamentos, existem diversos estudos que indicam uso potencial da Cannabis sativa e derivados como analgésicos e ansiolíticos (calmantes) para dores crônicas em doenças como câncer, artrite reumatoide e esclerose múltipla. No entanto, as pesquisas em andamento precisam abordar aspectos como a segurança e a toxicidade no uso da Cannabis sativa.

FV: Qual a diferença entre utilizar substâncias extraídas da maconha e utilizar a própria planta para a produção de um medicamento?
DL:
As diferenças são as mesmas que valem para o uso de qualquer planta para fins medicinais. Medicamentos contendo um único ou poucos princípios ativos, como dipirona, propranolol, fluoxetina, entre outros, são mais fáceis para serem monitorados tanto nos efeitos benéficos quanto na toxicidade. Como eles possuem uma quantidade relativamente pequena de componentes - o princípio ativo e os excipientes que normalmente não são muitos -, interações entre estes componentes são mais facilmente detectadas. As plantas, no entanto, são feitas de uma quantidade muito variada de substâncias. Algumas delas possuem efeitos potencialmente benéficos e outras não. Dependendo da parte da planta - folhas, tronco, sementes - a quantidade destas substâncias pode variar bastante e até a época do ano em que ela é coletada influencia nessas quantidades. Por isso, o recomendado é não utilizar a planta inteira ou partes dela na fabricação de medicamentos. O correto é utilizar pelo menos algum tipo de extrato tanto para aumentar a concentração dos princípios ativos de interesse como para diminuir a quantidade de outras substâncias que possam prejudicar os efeitos desejados.

FV: Na sua opinião, a inclusão da Cannabis sativa na lista das DCB’s é um avanço para a ciência e para o tratamento de determinadas doenças?
DL:
A inclusão da Cannabis sativa, sendo que já havia DCB’s para substâncias derivadas dela, significa apenas que agora já é possível solicitar o registro de um medicamento feito com a Cannabis sativa - um extrato seco de folhas, por exemplo. Até então, só era possível esse registro para produtos com o canabidiol ou o tetraidrocanabinol. Eu entendo que o verdadeiro avanço para a ciência brasileira e para o tratamento de doenças, não somente no caso das pesquisas com a Cannabis sativa, mas também de todo o potencial científico brasileiro, acontecerá quando houver desburocratização dos processos de importação e aquisição de matérias-primas e equipamentos e, sobretudo, investimentos decentes nas universidades brasileiras para que elas possam continuar produzindo conhecimento e recursos humanos de qualidade.

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