Geral

"Lei Maria da Penha deu mais visibilidade aos problemas, mas não consegue mudar a mentalidade", diz cientista social e mestre em educação

Maria Angela Soares

Maria Angela Soares Foto: Divulgação

A violência contra a mulher é assunto recorrente no dia-a-dia da nossa sociedade. Vítimas de agressão física, psicológica, emocional e patrimonial, as mulheres vêm sofrendo - ano após ano e cada vez mais - nas garras de uma sociedade machista e misógina.

A pesquisa Atlas da Violência, divulgada no início de junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou números aterrorizantes, de 4.621 mulheres assassinadas em 2015.

No mês em que a Lei Maria da Penha completa 11 anos e cerca de dois anos após a Lei do Feminicídio entrar em vigor, o Folha Vitória conversou com a cientista social e mestre em educação Maria Angela Soares para tentar entender esses dados e o motivo dessa grande violência contra as mulheres. Confira!

Folha Vitória: A Lei Maria da Penha completou 11 anos de vigência em agosto deste ano. A senhora acredita que muita coisa mudou, de fato, desde então?
Maria Angela Soares: A lei trouxe mais respaldo para a mulher, acabou encorajando mais denúncias, fez com que os problemas começassem a ter mais visibilidade, mas a lei não muda mentalidade. Em 2007, logo depois da publicação da lei, teve uma queda no número de casos de violência, mas a partir de 2008 esses números subiram novamente.  A violência contra a mulher está circunscrita numa cultura patriarcal, machista e construída historicamente e que nenhuma lei tem como acabar. A própria socialização das mulheres vai colocando a mulher num papel subordinado e os homens num papel poder, e isso desde que o mundo é mundo. Estamos no Século XXI com a cabeça ainda na caverna. A lei serve para dar respaldo legal, foram criadas as delegacias das mulheres com profissionais mulheres atuando, então se tem mais tranquilidade para poder colocar as denuncias e isso ajuda. O problema é que tudo esbarra na falsa moral de que o casamento não pode ser rompido, terminar um casamento é sinônimo de fracasso, as mulheres dizem que "não dei conta do meu papel" e isso é ruim. Quando a mulher é agredida, ela se sente responsável pela agressão e culturamente isso é entendido como destino.

F.V: A senhora considera alto o número de morte de mulheres no Brasil? (Somente em 2015, por exemplo, 4621 mulheres foram assassinadas no Brasil).
M.A.S: Pelo último Mapa da Violência, o Brasil é o quinto país com mais violência contra a mulher dentre os 84 países que o Mapa da Violência pesquisa. É um número enorme e que não tem perspectiva de diminuir porque a mentalidade permanece cristalizada na cultura da sociedade. A própria sociedade legitima, religião legitima. Essa relação assimétrica de poder entre o homem e a mulher prejudica muito, eles acham que a mulher é uma propriedade, é uma posse do homem: "a mulher é minha, eu faço o que eu quiser". Mas isso não é só com relação a violência, mas como um todo. No mercado de trabalho, as mulheres ganham menos, há bastante desigualdade, no mundo do trabalho, da política, com relação a profissões. As políticas que estão aí não estão dando conta, não são leis e medidas que vão melhorar.

F.V: Uma pesquisa feita em 2016 (“Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”) revelou que 29% das mulheres já relataram ter sofrido algum tipo de violência, mas que apenas 11% foram até uma delegacia para denunciar. Porque esse número é tão pequeno? O tratamento que essas mulheres recebem nas delegacias, que geralmente não é o adequado, pode contribuir para que esse índice de denunciantes não cresça?
M.A.S:
Há uma vergonha de denunciar, é assumir o meu fracasso no meu "papel natural", no destino traçado biologicamente. As mulheres pensam que se forem denunciar é vergonha. Se eu for denunciar eu exponho a ferida da família, tenho que admitir que a família está em frangalhos e isso prejudica a preservar a imagem do casamento. Outros fatores também tem influência: quando o indivíduo é mantenedor e é preso é um problema porque a responsabilidade cai sobre a mulher. Além disso, filho nenhum quer o pai preso. Eles dizem "meu pai tá preso por sua causa", a rejeição dos filhos para essas mulheres é difícil. No entanto, há uma outra questão: em algumas violências, as marcas ficam na alma, são violências psicológicas e, na delegacia, de vítima a mulher se torna ré. Não é em todas as delegacias que a pessoa vai ter o acolhimento adequado.

F.V: A mesma pesquisa apontou que em 43% dos casos a agressão mais grave sofrida pelas mulheres foi no próprio domicílio. Qual a gravidade desse número, especificamente?
M.A.S:
A maioria é sofrida nos domicílios, pelo próprio companheiro ou ex-companheiro porque a mulher não corresponde ao perfil que o homem deseja. Aí acontecem as agressões: psicológicas, emocionais, patrimoniais ... e elas próprias se culpam por isso.

F.V: A pesquisa Atlas da Violência, produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e publicada no início de junho, mostrou números alarmantes: cerca de 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil, em 2015, eram negras. Quais as razões para que o número de mortes seja tão maior entre negras do que entre brancas?
M.A.S: O problema já é muito grave e quando a gente faz o recorte social de cor e classe mostra uma gravidade ainda maior. Nesse país, a cor faz a diferença para nascer, para viver e para morrer. E isso aí é em tudo: nos acessos aos direitos de cidadania, saúe, educação e isso gera vulnerabilidade. Geralmente, as mulheres negras, que são de maioria pobre, só tem a delegacia para resolver seus conflitos. E isso aumenta é traduzido nos números. No entanto, isso não quer dizer que a violência contra a mulher branca não exista, mas na classe média e alta, composta em sua maioria por brancos, existem outros tipos de violência, como a psicológica, patrimonial.

F.V: A maior média na taxa de morte de mulheres negras entre todos os estados brasileiros é do Espírito Santo (o número é de 9,2 mortes para cada 100 mil mulheres). Porque a situação é pior aqui no Estado?
M.A.S: Esse é um fenômeno que merece estudo. Não tem uma explicação para esse número específico. Por exemplo, o menor índice de violência contra mulheres é do Piauí, um estado pobre, localizado no Nordeste e que também tem diversos problemas, como os existentes aqui. Eu tenho uma teoria que o problema não é tratado como problema social, é um crime como outro qualquer, que tramita como outro qualquer...Ainda existem outros números para serem considerados. O Espírito Santo, por exemplo, ainda tem uma colonização europeia muito forte, não é um estado formado em sua grande maioria por negros e mesmo assim lidera os números. 

F.V: A inclusão da morte de mulheres no rol de crimes hediondos (Lei do Feminicídio) contribuiu de alguma forma para a redução no número de assassinatos de mulheres?
M.A.S:
Não diminuiu. Porque a lei ficou muito aberta, os critérios são muito abertos, a lei ficou abrangente. Há poucos casos que se caracterizam como feminciícdios em si. A eficácia passa por outro processo, a polícia e a justiça precisam entender que a violência contra a mulher é um problema social e grave.

F.V: O que pode ser feito pelo governo e pela sociedade, em geral, para que a violência contra a mulher (seja física, psicológica, mental) diminua?
M.A.S: Fundamentalmente, tem que mudar a socialização primária. Tem que começar isso nas famílias, as meninas são educada para subordinação e os meninos para o mundo público, para o espaço público. Os brinquedos infantis, por exemplo, são transformadores de papeis: panelinha e fogãozinho para as meninas; carro, bola, espada para os meninos. As meninas tem que falar baixo, não pode falar palavrão, são obrigadas a lavar louça e os meninos são criados para serem soltos. As famílias têm que entender que as meninas tem os mesmos direitos que os meninos, que os filhos devem lavar louça também. Outro exemplo: os homens não têm o direito de desenvolver sua emoção, não podem chorar ... a gente cria meninos para serem violentos, ser macho, falar grosso, chutar porta... Além disso, as demais instituições precisam entrar. A escola precisa trabalhar mais o empoderamento da mulher. A mãe fica em casa e o pai trabalha fora, isso é ensinado nos livros didáticos. As religiões contribuem para isso com força: mulher restrita ao lar, obediente. É um processo lento, mas para mudar tem que mudar o processo de socialização, de empoderamento, que a mulher é capaz e que todos os espaços da sociedade também são possíveis para ela. As instituições socializadoras que precisam caminhar em conjunto. A mídia também tem papel importante: para fazer propaganda de carro, de cerveja, precisam de mulher. Para fazer matéria de gerentes, precisam de homens. É preciso mostrar as mulheres como seres pensantes, apresentar outras perspectivas para as mulheres. O Estado também tem que fazer o seu papel, legitimar uma educação inclusiva e a sociedade tem que parar de culpabilizar a vítima: apanhou, foi espancada, morreu, tudo isso é culpa da vítima. 

Pontos moeda