Política

Reforma da previdência tira recurso dos mais vulneráveis, diz defensor público da União

João Marcos Mattos Mariano

João Marcos Mattos Mariano Foto: Arquivo Pessoal

O governo federal pretende aprovar uma reforma da previdência, que depende de sanção do Congresso Nacional, alegando que há um rombo crescente no sistema, que saltou de 0,3%, em 1997, para 2,7% do PIB. Nas justificativas, além do maior consumo do Produto Interno Bruto, também há a explicação de que os brasileiros estão vivendo mais e que por isso a população terá mais idosos e menos jovens sustentando a previdência por meio do mercado de trabalho.

Para suprir esse rombo, o governo quer fixar a idade mínima para requerimento da aposentadoria em 65 anos e elevar o tempo mínimo de contribuição de 15 para 25 anos; igualar essa idade mínima para homens e mulheres; revogar a aposentadoria especial para professores e policiais civis; reduzir a pensão por morte; acabar com com o status de segurados especiais dos trabalhadores rurais; aumentar a idade mínima de beneficiários (idosos ou deficientes de baixa renda) que nunca contribuíram com a previdência de 65 para 70 anos; aumentar a alíquota de contribuição, entre outras medidas.

Para entender melhor a reforma, o Folha Vitória convidou o defensor público federal João Marcos Mattos Mariano, que é formado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e atua no núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União (DPU).

Confira:

Folha Vitória: Especialistas defendem a reforma. Ela é mesmo necessária?
João Marcos: Realmente é necessário discutir as rédeas da previdência. É uma necessidade porque existe uma mudança no perfil da sociedade brasileira e em longo prazo essa mudança pode implicar num desequilíbrio entre as receitas e as despesas. Isso não quer dizer que se possa importar modelos estrangeiros e se pautar em modelos estrangeiros sem olhar o perfil da sociedade brasileira. A mensagem que o ministro [da Fazenda, Henrique Meirelles] enviou ao Congresso e à previdência, com argumentos que pautam a reforma, sempre se preocupa na diferença entre a previdência brasileira e a de países que hoje são os mais ricos. Nesses países a idade mínima é de 65 anos. Mas olhar só essa idade e olhar que a população se torna mais velha não abarca todo o problema, pois a expectativa de vida nesses países está em 85 anos e no Brasil 65. Em países como a Turquia e a Eslováquia, que têm expectativa de vida menor, o limite de idade é de 62 e 60 anos. Outras coisas que não estão sendo discutidas é essa diferença de expectativa de vida, que é gritante, e a diferença de expectativa de vida com saúde. O aposentado tem expectativa de vida com saúde de seis meses no Brasil. Já nos outros países, antes da pessoa ser acometida por doença, ela tem uma média de seis anos. Sem olhar essas diferenças básicas fica difícil discutir a reforma. 

FV: E em relação ao tão pregado déficit?
JM: Fala-se muito no déficit, como se fosse atual e evidente, quando na verdade temos muitas informações técnicas como a de auditores da Receita Federal, que mostram que a previdência, sobretudo privada, é superavitária se você considerar todas as fontes de arrecadação. O déficit existe principalmente na pública e na militar, que não está na reforma. A previdência é tão superavitária que serve de fontes de recursos para o governo. O grande interesse não é cortar os gastos, mas permitir que o dinheiro que vai para a previdência seja reinvestido em outros campos, seja fiscal ou em outras áreas. O dinheiro da previdência entra, custeia a previdência, e ainda custeia outros gastos do governo. São questões que têm de ser muito bem discutidas. 

FV: Vários especialistas, como os auditores fiscais da Receita Federal citados pelo senhor, já apresentaram estudos e modelos que mostram que a previdência no Brasil não é deficitária como se prega e sim superavitária. Os cálculos do governo só têm levado em consideração, então, a fonte do trabalhador?
JM: As receitas que ingressam a Constituição são das mais variadas espécies. As receitas das empresas, dos trabalhadores, as receitas de porcentagem na loteria, enfim, várias fontes. No Brasil impera o princípio da solidariedade. Todas as pessoas, patrões ou empregados, têm de contribuir para que quem deu sua vida para manter o mercado de trabalho tenha conforto quando ocorrerem os chamados riscos sociais, que envolvem os problemas de saúde, velhice, a morte... E quando se fala em rombo da previdência, parece que se esquece dessa diferença. Dessa pluralidade de entradas. Como se ela fosse só financiada pelos trabalhadores. E na verdade não é assim. Essa regra existe em outros países . Os auditores, quando dizem que a previdência é superavitária, olham todo o dinheiro que entra e que sai e realmente não há déficit. O déficit vem quando você olha o que o trabalhador investe e quando ele vem a receber e essa conta não faz o menor sentido. Além disso, muito do dinheiro não fica na previdência. Vai para os cofres e o governo utiliza nas mais variadas áreas que nada têm a ver com previdenciária.

FV: As propostas do governo, de modo geral, não seriam aplicáveis à situação do país?
JM: Fazer uma reforma simplesmente para impor um limite de idade, equiparar idade entre homem e mulher com base em futura projeção de igualdade entre e os gêneros, que hoje ainda não existe apesar dos avanços, você buscar equiparar ou aproximar mais as aposentadorias rurais e urbanas como se os trabalhos tivessem a mesma relação, quando na verdade há até hoje trabalho escravo, é algo que não dá para ser feito. 

FV: Ainda que houvesse, apenas, a fixação da idade mínima não seria uma reforma ideal?
JM: Acho que a idade mínima maior não pode perder de vista como é a sociedade brasileira, o idoso brasileiro, sua qualidade de vida, a expectativa de vida do Brasil. Não pode se pautar em modelo estrangeiro, de países extremamente desenvolvidos. Que é o que acontece agora, essa comparação com outros países. No Japão, que tem um dos modelos que o ministro exalta, há um mecanismo progressivo que só daqui a dez anos a idade mínima será 65 anos. Falam como se fosse uma unanimidade. O que tem de se olhar bem é com quantos anos o trabalhador brasileiro começa a trabalhar e nesses países. Será que é igual esse ponto de partida? Será que só a pessoa, depois de 20, 30 anos ou formada, vai começar a trabalhar? Ou há uma entrada muito cedo no mercado de trabalho? Quanto mais cedo a pessoa começar a trabalhar, mais tempo vai ter de contribuir. Aí você aumenta a diferença de desigualdade entre ricos e pobres. Imagine você aumentar a idade para uma pessoa receber benefício social. Um idoso em miserabilidade, cuja idade para receber hoje já é alta, de 65 anos, para 70, e cortar esse benefício. É muito difícil conseguir esse benefício e querem tornar ainda mais difícil. O idoso e o trabalhador rural terão de viver na informalidade ou na mendicância. Será que é esse o caminho de uma reforma? Tirar dinheiro dos mais vulneráveis? A mudança na regra do professor que busca equipará-lo ao profissional geral, apesar de existir especificidades, também é ruim. O professor já é desvalorizado e as pessoas já têm dificuldade para continuar. Aí você torna ainda mais difícil. A reforma também trabalha buscando excluir da aposentadoria especial aqueles que trabalham em situações com fatores tóxicos e ambientais, a que chamamos de ambiente insalubre. Na prática se torna mais difícil a pessoa conseguir em juízo essa aposentadoria especial, o que também é algo a ser pensado. São coisas que o constituinte originário não criou para privilegiar, mas recompensar carreiras com situação pior do que as demais. 

FV: O senhor citou anteriormente a questão da igualdade de gênero entre homens e mulheres, já que se busca igualar a idade mínima em 65 anos para ambos os sexos. Em sua visão também não seria uma reforma justa e eficaz. Por quais razões?
JM: Acredito que ainda há grandes desigualdades entre homens e mulheres, que é um fenômeno mundial. No Brasil então, onde há uma sociedade machista e com grandes problemas, como no Espírito Santo que ainda está no pico do feminicídio, é mais difícil ainda de você falar. É claro que a sociedade muda e a mensagem do ministro fala isso. Mas não tão rápido para debater esse tema da igualdade. A mulher ainda sofre com a dupla jornada, continua havendo muita diferença em salários e postos ocupados, no papel social. Simplesmente igualar isso com base num argumento da expectativa de vida, que é maior para as mulheres, é errôneo. Não pode ser olhado só desse ponto de vista. O debate tem de ser muito profundo. O que a mensagem do ministro fala é que se você olhar pessoas entre 14 e 19 anos há igualdade de salários. Então no futuro essa renda será igualitária. Pode ser que seja, mas até hoje prevalece a desigualdade. Mesmo mulheres jovens sofrem abusos de uma sociedade machista e todos os prejuízos de estarem numa sociedade machista. Como previdenciárias também vão sofrer.

FV: Outro ponto estudado pelo governo federal é a possibilidade do pagamento de benefícios inferior a um salário mínimo...
JM: O salário mínimo já é o mínimo. Na mensagem ele [o ministro] confessa que, comparado aos países em que se espelham, é bem baixo. O salário mínimo deveria ser por volta de R$ 3 mil e não é isso. Você já tem o mínimo e querer negar o mínimo ainda? Quanto mais você tirar esse benefício social fundamental, você transfere esse problema para outras áreas. Pensando do ponto de vista constitucional, tenho sérias dúvidas da legalidade de uma medida que tente reduzir essa salvaguarda mínima, pois mesmo uma emenda tem de olhar as garantias fundamentais do indivíduo. As cláusulas pétreas. Tenho sérias dúvidas de que é possível reduzir para aquém do mínimo. 

FV: No fim das contas, olhados todos esses pontos e quem sabe excluídos do modelo apresentado, uma reforma ainda será necessária...
JM: É necessário fazer a reforma, mas que seja muito bem discutida. E fazer uma reforma para o Brasil e não pegar dados com base no Brasil futuro, que talvez venha a acontecer, como os gráficos imaginam. Além disso tem de se ponderar o Brasil desigual, que tem vários problemas em várias áreas de direitos sociais. As promessas sociais do constituinte ainda não foram todas concluídas. Um relatório da ONU apresenta sérias preocupações de que o Brasil descumpra acordos, pois há risco de que o país fique pior do que hoje. E no meio desse turbilhão de coisas, a opção de tornar menos valiosa a previdência é fazer com que a pessoa fique numa situação de que ou ela busca aposentaria privada ou corre o risco de ficar à míngua. 

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