Política

"Se prender resolvesse não estaríamos nesse caos", diz especialista sobre sistema prisional brasileiro

Bruno Alves de Souza Toledo

Foto: Reprodução

As rebeliões no Amazonas e em Roraima, que teriam sido motivadas pela disputa entre facções do crime organizado, chocaram o país nos últimos dias. Ao todo, 87 internos dos presídios Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, e do Complexo Penitenciário de Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, foram mortos.

Os episódios reacenderam a discussão sobre o sistema prisional brasileiro, que apresenta superlotação, déficit de vagas, histórico de tortura e rebeliões, controle feito pelo crime organizado e também o debate sobre as privatizações. 

Para falar sobre o tema, o Folha Vitória entrevista o advogado e especialista em Direitos Humanos Bruno Alves de Souza Toledo, que já atuou no Conselho Municipal de Direitos Humanos de Vitória e que atualmente atua no Conselho Estadual. Toledo também preside a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória e é assessor no Tribunal de Justiça do Estado (TJ-ES).

Folha Vitória: Massacres como o do Amazonas e de Roraima eram esperados?
Bruno Toledo: Quem conhece o sistema prisional no Brasil, e não tem diferença de um Estado para o outro, apesar de algumas particularidades, sabe que essa tragédia era anunciada. É óbvio que massacres como esses chocam, impressionam, assustam, mas quem já esteve no sistema sabe que temos uma situação inconstante, com perigos e a qualquer momento podemos ter uma explosão dessa magnitude. Temos um sistema superlotado, em condições medievais, que conta com a indiferença de grande parcela da sociedade civil e com a irresponsabilidade e hipocrisia das nossas autoridades, que acham que têm o controle, que estão dando resultado, mas infelizmente vemos mais do mesmo. A prisão hoje não cumpre nem a penalização, quanto mais a ressocialização.

FV: Novas prisões não seriam a solução?
BT: Quando você tem déficit de 200 mil vagas tem que pensar como resolver esse problema. O lamentável é que sempre pensamos em caminhos que só transferem problemas de hoje para amanhã. Não conseguimos pensar numa lógica que impeça a roda de girar. Construir novas prisões apenas pode parecer resolver por agora, porque não vai conseguir. Primeiro porque nem dinheiro para isso tem. Depois, mesmo que tivesse, que construísse, na lógica que estamos a porta de entrada no sistema está mais larga para a entrada do que a saída. Nada faz essa conta fechar, de quantos entram e quantos saem. Pensar diferente disso seria pensar o que nós, enquanto sociedade, Estado, Nação, precisamos fazer para não transferirmos esse problema para a próxima geração. Quando me perguntaram na ONU [Organização das Nações Unidas] em 2010 se o sistema prisional do Espírito Santo precisava de novas vagas, não seria inocente de dizer que não. Precisava dizer que novas prisões precisavam ser emergencialmente construídas. Mas não podemos ver no horizonte um projeto de nação com a solução para esse caos na construção de novas prisões. É triste ter de reconhecer que vivemos um momento em que se fala na necessidade de construir presídios, ao mesmo tempo em que São Paulo e Espírito Santo fecham escolas. Populações inteiras estão sendo arrastadas para a criminalidade e estamos criminalizando populações inteiras por crimes que não necessariamente precisariam da prisão. Estou falando de crimes pequenos. O sistema tinha que ser exceção e não regra. Precisamos combater a lógica do encarceramento.

FV: Segundo levantamento realizado pelo Estadão, 27 facções disputam o controle do crime organizado em todo o país, o que também envolve o sistema prisional. Entretanto, o Espírito Santo não aparece na relação de territórios dominados. Como é essa situação por aqui?
BT: As informações que a gente têm dão conta de que, de fato, essas grandes facções não conseguem estabelecer domínio muito claro do Espírito Santo. O que se tem é que você, ao ser preso, de alguma forma se identifica como pertencente a determinados grupos ligados à criminalidade aqui. Essas disputas territoriais, que acontecem especialmente na Grande Vitória, são levadas para dentro do sistema. E aí você tem sim determinados presídios que concentram pessoas de determinadas regiões e não se aceita que sejam colocadas pessoas de grupo rival, sob pena de você acender o estopim de um conflito. Não se sabe se essas rivalidades aqui se alinham ou se vinculam como 'filiais' dessas grandes facções, como comando vermelho, ADA [Amigo dos Amigos] e PCC [Primeiro Comando da Capital]. As autoridades capixabas não confirmam e não se tem isso declarado. Em São Paulo, quando entramos em unidades chefiadas pelo PCC, a primeira coisa que vem é o líder da cadeia dizendo para você ficar tranquilo porque é do PCC. Isso é declaradamente uma cadeia dominada por facção, o que não tem no Espírito Santo.

FV: O que acha do fato de o Espírito Santo ter sido noticiado no Brasil inteiro por não registrar mortes em presídios nos últimos dois anos?
BT: É óbvio que falar que não teve morte e que outros Estados apresentaram índice elevado é um indicador. Mas é muito grave medir o sistema prisional pelo número de mortes porque a missão dele é não matar. Não devemos elogiar o sistema por não cumprir o seu papel. Se não tem morte está cumprindo o mínimo. O sistema não é para matar. Não podemos medir por baixo. O fato do Espírito Santo não ter registrado morte não pode ser indicador de que o nosso sistema está bom. Não faz querer dizer que não há tortura. Há pouco tempo, quando existia comissão de prevenção à tortura no Tribunal de Justiça do Estado, mais de 60 presos foram flagrados com as nádegas todas queimadas porque ficaram sentados no pátio no sol quente. Evidencia muito bem como o sistema continua desumano. Então o fato de ter ou não ter morte não pode ser um selo que diga que o sistema prisional do Espírito Santo é exemplo. Temos quase 20 mil presos no Estado. Tivemos um aumento absurdo do número. Em 2003 falávamos em 3 mil. Agora, menos de duas décadas depois, estamos falando de quase 20 mil presos. É um crescimento grande, que indica um caminho perigoso, de encarceramento em massa sobretudo de populações pobres, de juventude e de população negra. Esse dado precisa ser levado em consideração. A resposta que o Estado tem dado é pura e simplesmente as prisões. Prende-se muito e prende-se mal porque não se prende efetivamente quem oferece maior risco à sociedade e que precisa ter sua liberdade cerceada. Quem está no sistema, de forma grosseira, são pessoas que poderiam responder o processo em liberdade. Amontoa-se essas pessoas no sistema e aí é óbvio que você tem ele funcionando como causa da violência. Questão muito importante que nós precisamos entender. Há conexão direta com o que acontece aqui fora e vice-versa. Quando a gente embrutece, desumaniza o sistema, na medida em que criamos depósitos humanos, essas pessoas um dia vão sair de lá. E quando saírem de lá seremos todos nós, que queremos fechar os olhos, vítimas. Seremos vítimas desses sistemas que as desumanizou. Crimes mais graves são frutos também de um processo de um sistema que cria a barbárie e naturaliza a barbárie. A sociedade precisa olhar para essa situação com responsabilidade. O que estamos fazendo é enxugar gelo. Nós presenciamos os casos Carandiru, Urso Branco e Pedrinhas. O que efetivamente temos feito desde então? Aumenta-se em 170% o número de presos nos últimos 15 anos sem efetivamente criar condições para isso. Nunca se matou tanto no Brasil. A gente aumenta prisões achando que está diminuindo, mas a gente está aumentando o crime. Não há vinculação direta entre aumento do número de prisões e diminuição da criminalidade. A conta não vai fechar. Precisamos enfrentar essa questão no seu cerne. Pensar no que estamos efetivamente fazendo para evitar o crime antes de encaminhar essa pessoa para a prisão e impedir que ela volte ao crime. A reincidência no Brasil é de 50%. Nesse momento a prisão é causa de crimes fora dela. Porque não há controle do Estado sobre o sistema. Como entram armas daquele calibre em Manaus sem a complacência do Estado? Sem a omissão? Com a taxa de reincidência, preso que entra por crime leve vai voltar para o sistema. E quando ele voltar, irá voltar por crime mais grave e a cada entrada e reentrada vai subindo um degrau nessa escola do crime que é o sistema prisional.

FV: Muitas pessoas apresentaram indignação por outras se preocuparem com o que estava acontecendo nos presídios de Roraima e do Amazonas, por exemplo. Acredita que isso se deva ao discurso governamental e, muitas vezes político, de apresentar a prisão como solução única e imediata ao avanço da criminalidade?
BT: Quando olhamos para a situação do sistema prisional, não podemos nos eximir da responsabilidade. Nós legitimamos esse tipo de barbárie. Infelizmente a cultura que predomina no Brasil é a da indiferença, que legitima o "bandido bom é bandido morto". Quando se defende dignidade do encarcerado não se pensa só no direito dele, mas das pessoas que estão aqui fora. Quando eu falo que bandido bom é bandido morto, quando legitimo e bato palma para chacinas, estou legitimando que eu também seja diminuído na minha dignidade. Imagine esse preso que está passando por isso, como os que sobreviveram a essa barbárie. O que será do dia em que eles saírem da prisão? Tendo sido eles submetidos a essa situação não vão sair de lá e se reintegrar, se ressocializar e chegar apertando nossa mão e dando abraço. Seremos todos nós vítimas do processo. Quando a sociedade se torna indiferente, ela permite que toda ela seja a próxima vítima. O sistema prisional do jeito que está é fruto de um modelo equivocado de reformar um problema social gravíssimo, que é a criminalidade. Se resolvêssemos o problema com o encarceramento seríamos o país mais seguro do mundo porque estamos nos encaminhando para a liderança global em população carcerária. Se prender resolvesse não estaríamos nesse caos. Prendemos muito, prendemos mal e não fazemos nada em relação aos presos. Não podemos tampar o sol com a peneira. Apenas legitimamos o encarceramento em massa de uma população. Presídios hoje são depósitos humanos. Além do mais, não legitimar esse discurso do 'bandido bom é bandido morto' não é fazer discurso da impunidade. Pelo contrário. Nenhum defensor de Diretos Humanos defende irresponsabilidade, sobretudo vitimando outras pessoas. Mas a solução da barbárie não é barbárie. Da violência não é violência. A sociedade não pode legitimar o crime. E permitir que o Estado tente curar o crime com outro. 

FV: Como vê a privatização de presídios, tendo em vista que ela é apontada por muitos como a solução do problema do sistema carcerário brasileiro?
BT: Tenho todas as restrições quanto à privatização, sobretudo de funções que são exclusivas do Estado. A punição para crimes cometidos é responsabilidade do Estado. É um equívoco terrível privatizar isso. Há corrupção no sistema desde obras construídas a construções feitas sem licitação, alimentação, vigilância, fornecimento de serviços que também são feitas de forma pouco transparente. O sistema prisional é e sempre foi espaço privilegiado para práticas ilegais. Então quando você tira do Estado a responsabilidade de controlar isso, o sistema parece abrir brecha para aumento dessa promiscuidade. A ideia de ter lucro em cima de situações como essa que vimos em Manaus é um negócio assustador. Pensar que possam permitir que estejam lucrando a partir do caos é o fim do mundo. Gerenciar isso sob a ótica do lucro parece o pior dos mundos. Temos que gerenciar sob a ótica da dignidade, seja as daqui de fora seja as lá de dentro. Há um conflito de interesse nessa perspectiva. É óbvio que a empresa vai querer sempre obter lucro e obter lucro num sistema como esse o preço pode ser alto para a sociedade. 

FV: Consegue apresentar uma alternativa ao sistema vigente?
BT: Busquei muito uma alternativa porque lido diretamente com isso. Quem estuda sobre acaba se tornando pessimista, achando que todos estamos enxugando gelo, sem resolver, empurrando para as próximas gerações uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento. Frequentei diversas vezes unidades da Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), experiência que começou em São Paulo e que hoje está forte em Minas Gerais. No Espírito Santo chegou a ter uma unidade em Cachoeiro, mas fechou. A proposta dela é revolucionária para o sistema prisional. Não é coisa de outro mundo, mas eles conseguiram fazer do sistema aquilo que um dia sonhamos , a partir do profundo respeito a qualquer pessoa e profunda lógica de ressocialização. Com cada ato positivo, o interno consegue caminhar adiante com sua progressão. Eles fazem sua própria comida, limpam e fazem todo o tralho dentro da unidade. A cada passo na organização conquistam um beneficio. Em vez de conseguir uma visita só, conseguem encontro com a família. Se avançarem mais conseguem fazer uma festa para os parentes e cada vez mais o vínculo é construído com a família e a sociedade. Eles precisam entender que precisam voltar para a sociedade de forma diferente. Não tem rebelião, não tem fuga. Acho que é possível a gente construir de uma outra forma. Não estou dizendo que as pessoas que oferecem grande periculosidade devem ficar soltas mas a grande maioria dos encarcerados precisa ter a oportunidade. Não são esse risco que a sociedade pensa. Estamos falando de crimes leves, sem risco alto, como pequeno tráfico e pequenos assaltos. Não estamos falando de homicidas e grandes traficantes, pois esses não são a maioria do sistema. Por isso acho que é possível olhar para essa realidade de forma diferente. Depende do olhar da sociedade, da polícia, do promotor, do juiz sair dessa lógica aprisionadora. 

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