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Loznitsa e seu retrato da violência

Redação Folha Vitória

Havia um lugar vago na mesa da coletiva de Leto/O Verão, na manhã de quinta-feira, 10, e era justamente o do diretor. Apesar dos esforços da organização do 71º Festival de Cannes, Kirill Serebrennikov não pôde acompanhar a projeção de seu longa. Permanece preso na Rússia, acusado de corrupção. Organizações de cineastas de toda a Europa protestam, contra o que chamam de arbitrariedade. Serebrennikov, de 48 anos, estaria preso por liderar a oposição a Vladimir Putin no meio do cinema. No fim de semana, o presidente tomou posse para o seu quarto mandato de seis anos, e em toda a Rússia os protestos terminaram com prisões e pancadarias.

Leto reconstitui um verão da perestroika, na antiga União Soviética no começo dos anos 1980. A cena roqueira de Leningrado, dois homens, dois artistas, Mike e Viktor, e a bela mulher entre eles. Podem ser apreciadas, como fez o enviado do Estado, as belas qualidades do longa do iraniano Asghar Farhadi, o thriller em língua espanhola Todos lo Saben, que abriu o evento, mas nada que se compare ao que já veio depois. Leto é excepcional e a ausência do diretor permitiu que a política marcasse o debate sobre a obra. Sem justificativa legal, Serebrennikov está preso sem direito a visita da mulher nem do médico. O próprio advogado que o acompanha tem acesso mitigado a seu cliente. Informa apenas que sua saúde está deteriorada.

Dois homens e uma mulher num momento de transformação da URSS. A cena roqueira clama por liberdade de expressão, e uma nova economia desenha-se nessa nova relação entre arte e mercado. No anúncio da seleção oficial deste asno, Thierry Frémaux havia destacado o que chamou de ‘renouvellement’, renovação. Serebrennikov é um dos signos desse novo Festival de Cannes, referendado pela presença de um autor russo de prestígio como Andrey Svyagintsev no júri. Leto já está nascendo como um dos grandes filmes de rock do cinema. Outra surpresa da seleção - o filme mais inesperado, inatendu, segundo Cahiers du Cinéma - vem do Egito. Yomeddine, primeiro filme do jovem (33 anos) A.B. Shawky, o que o habilita a concorrer também à Caméra d’Or -, não poderia ser mais diferente que Leto.

Os miseráveis, sem canto nem dança. Um leproso atravessa o Egito em companhia de um órfão. Dois párias que, a todo momento, conhecem o preconceito e a violência. O leproso busca a família, o pai que, quando ele era criança, o depositou no leprosário prometendo voltar, e sumiu. É impressionante como o recorte (neo?)realista ainda não está esgotado. O filme é forte, bom, emociona. O festival investe no político, no social - no humano. A mesma pegada transparece no que foi visto, até agora, na Mostra Un Certain Regard, que compõe, com a competição, a seleção oficial. Donbass, de Sergei Loznitsa, que abriu Um Certo Olhar, dialoga de forma inquietante com Leto. O filme retrata a violência cotidiana na região a leste da Ucrânia. Se existe um inferno na Terra, poderia ser o que Loznitsa mostra.

Na sequência veio um primeiro filme do Quênia, e o primeiro filme queniano no maior festival do mundo. Rafiki, de Wanuri Kahiu, trata da descoberta da homossexualidade por duas garotas.

Rafiki está proibido no Quênia, onde ligações homossexuais também podem ser penalizadas com cadeia, em decorrência das velhas leis coloniais. A diretora conta sua história como um melodrama. Douglas Sirk em Nairóbi. Mal saído do choque de Rafiki, o repórter mergulha no universo de Gräns/Border, do dinamarquês Ali Abbasi. É o mais estranho, bizarro dos filmes. Uma guarda de aduana desenvolve uma relação patológica com um sujeito a quem quase mandou prender. Ela é meio animal. Fareja irregularidades na bagagem dos viajantes como um bicho. Ele não é o que parece ser. Terminam por compor um casal sui generis. Mas, enquanto nossa protagonista tenta se manter humana num mundo hostil, ele só pensa em se vingar. Pode não ser "fácil", mas foi o filme mais aplaudido até agora nas sessões de imprensa, mais até que Leto.

O festival tem questionado a representatividade. Gräns/Border talvez seja o caso mais radical, mas tem a representatividade das mulheres, dos negros. Ryan Coogler exibiu Pantera Negra no Cinema da Praia e na quinta-feira à tarde participou de um debate sobre o sucesso de seu super-herói negro.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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