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'Pastoral Americana' enterrou a ideia de sonho americano do século 20

Redação Folha Vitória

Pastoral Americana, de Philip Roth, me deixou com insônia quando o li pela primeira vez, em 2013.

No livro, o narrador é Nathan Zuckerman, a essa altura conhecido de todos. Na primeira das três partes, ele narra em primeira pessoa sua experiência com Seymour Levov, o Sueco.

A convivência entre os dois se dá na escola secundária, quando Sueco era um atleta excepcional e ídolo secreto de Zuckerman. Nathan era amigo de Jerry, irmão do Sueco (Jerry, mais tarde, é o máximo).

Muitos anos depois, Sueco e Zuckerman se encontram novamente, duas vezes. É a partir do segundo que Zuckerman escreve o que escreve, as duas partes finais do Pastoral Americana (que junto com A Marca Humana e Casei com um Comunista formam a Trilogia Americana).

Aí o desgosto que o livro provoca é proporcional àquela impressionante habilidade literária que Roth tinha aos 64 anos, em 1997. A história do cara bonitão, que herda a fábrica de luvas do pai, se casa, vai morar em uma região rural de New Jersey e tem uma filha que se revolta contra a Guerra do Vietnã - abastecendo uma série de confusões, explosões e mal-entendidos - é emocionante, espetacular, trágica e inesquecível.

A narração de Zuckerman (na tradução de Rubens Figueiredo) mistura a terceira pessoa, reflexões, pensamentos e suposições do Sueco, e faz o livro de 500 páginas voar. Os temas, sempre presentes na obra de Roth, são igualmente irresistíveis: conflitos familiares levados ao extremo, dificuldade com a sexualidade, judaísmo, e, claro, a América.

O "narratário" desse livro, no conceito de Vincent Jouve, é o leitor americano de Zuckermann ("Pelos temas que aborda e pela linguagem que usa, cada texto desenha no vazio um leitor específico. Assim, o narratário (esse leitor ideal), da mesma forma que o narrador, só existe dentro da narrativa: é apenas a soma dos signos que o constroem", explica Jouve).

Esse pensamento nos leva para uma reflexão de Rubens Figueiredo (anotada por mim):

"Ao ler com atenção os livros deles (Susan Sontag e Paul Auster, mas supõe-se que outros grandes americanos), você não encontra críticas a respeito da distribuição desigual de poder no mundo. O postulado desses autores pode ser entendido como 'os Estados Unidos dominam e é bom que seja assim'. […] Estou traduzindo um livro que, a cada dez páginas, o autor fala em povo americano, democracia americana, sociedade americana, os Estados Unidos. É impressionante. E nós lemos e não percebemos isso. Não percebemos porque o nosso pressuposto é que isso é normal. Mas isso não é normal".

"Eu quero viver de verdade", dizia Leminski, "eu fico com o cinema americano".

Parte do imaginário ocidental (e brasileiro, em específico) é moldada pela indústria americana, então não é surpresa que um livro como esse tenha tanta ressonância por aqui, também.

Diz Roth (Zuckermann):

"A ruptura do futuro americano previsto, que consistia simplesmente no desenrolar do consistente passado americano, no fato de cada geração se tornar mais esperta que a anterior - mais esperta por conhecer as inadequações e limitações das gerações precedentes - , […] no desejo de ir até o limite na América apoiados nos nossos direitos, […] de forma a levar a vida sem ter de pedir desculpas, como um igual entre iguais.

E então a perda […] - iniciando o Sueco no desajuste de uma América completamente distinta, a filha e a década fazendo picadinho da sua forma particular de pensamento utópico, a América da peste se infiltrando no castelo do Sueco e, ali, infectando todo mundo. A filha que o transporta para fora da sonhada pastoral americana […]."

A Pastoral é o sonho americano, the american dream, the american way of life, the wellfare state, the motherfucking Thanksgiving, com seu "peru gigante que alimenta 250 milhões de almas atormentadas" ("É a pastoral americana por excelência, e dura vinte e quatro horas"). O sonho é viver dentro da Pastoral, ser consumido pela Pastoral, está tudo ali, ela nos alimenta, nos fornece o football, nos enriquece, por que alguém em sã consciência gostaria de mudá-la?

Mas o Sueco é transportado para fora da Pastoral - pela filha.

"E por que não deveria estar onde eu queria? Por que não deveria estar com quem eu queria? Não é esse o espírito desse país? Quero ficar onde quero ficar e não quero ficar onde não quero ficar. É isso o que significa ser americano… não é?"

Ao acompanhar o personagem em busca das respostas a essas perguntas, Roth concluiu o século 20 na ficção mundial - no qual sua obra ressoou, tanto quanto a dos maiores, de sempre, de todos os tempos.

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