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Tom Zé sobe ao palco com 'Canções Eróticas de Ninar'

Redação Folha Vitória

São Paulo - Só restaram as meias pretas. Sutilmente afrouxadas, elas cobriam os pés como se fossem a última resistência da vergonha. O resto foi saindo rápido assim que o fotógrafo apontou a câmera. O tênis primeiro, as calças depois e então a blusa, a camiseta e a cueca. Quinze segundos e o homem livrava-se de todo o pecado das sem-vergonhices pregado em suas costas na infância medieval da Irará dos anos 40 para se entregar em pele e alma aos caprichos de uma matéria de jornal. A Igreja e seus castigos não assombram mais o senhor de 78 anos deitado nu na cama de seu apartamento como um dia assombraram o menino batizado Tom Zé em homenagem a Santo Antônio e São José.

Foi de uma costela do sacro e de outra do profano que se fez Tom Zé. Sua música experimenta das doçuras do céu até despencar pelas escadarias que levam ao inferno e suas malícias se escondem por trás de uma ingenuidade que só existe até o final da primeira estrofe. Mas se um dia Deus e o Diabo apareceram em um único ser diante de seus olhos, foi em forma de mulher. Uma senhora mulher de 30 anos que tocava piano ao seu lado. Apenas ela, ele e o piano. O pé pressionando o pedal do instrumento contraía o tornozelo, enrijecia a coxa e balançava os quadris, fazendo-a dançar por inteiro. O que sobrou de Tom Zé saiu da sala crente de que a vida nascia e morria ali.

Ao pensar em como deveria encarar um convite para subir ao palco do Bourbon Street, uma casa de jazz e blues de São Paulo, diferente dos palcos maiores em que faz o lançamento de seus discos, Tom voltou os pensamentos a Irará, no interior da Bahia, para fechar uma ideia. O sexo que vencia a Igreja disfarçado de canções de ninar, que aparecia sutilmente nas rodas das donas de casa e explicitamente nos ataques das Marias Bago Mole defloradoras de adolescentes seria sua matéria-prima. Assim, foi elaborando um repertório para o show de amanhã, já batizado Canções Eróticas para Ninar. Um desfile de músicas, algumas nunca gravadas por ele, e de contos de amor e de sexo em formato mais rústico e acústico. Apenas Tom, o fiel escudeiro Jarbas Mariz (voz, percussão, cavaquinho e viola), Daniel Maia (voz, arranjos e guitarra) e Felipe Alves (voz, violão e contrabaixo).

Buñuel

Quando começou a entender que o pai poderia estar fazendo mais do que beijando a mãe por trás da porta trancada, Tom Zé assistiu a um filme do cineasta mexicano Luis Buñuel que o acertou no peito. "Havia sempre uma madame que consultava o padre e o padre dizia: 'O quê? O seu marido quer ir no seu quarto duas vezes por mês? Não pode! Apenas uma vez e não para fornicar, mas só para procriar'", recorda. A cabeça do menino girava em 78 rotações.

O mal poderia morar dentro de si e deveria ser combatido pela força da comunhão e da confissão. Diante de padre Giocondo, Tom Zé reduzia-se a pó experimentando a terrificante sensação de proferir seus pecados pela própria boca. Quando o sacerdote percebeu que aquele gesto levava o garoto à beira do abismo, decidiu ajudar. "Ele só dizia o tipo do pecado e eu confirmava se havia cometido ou não." Assim, o padre perguntava: "Xingou a mãe?", "Roubou?" "Mentiu?" E o garoto só respondia "sim" ou "não".

Irará não colocava o assunto sexo na sala de estar. As sensações de que algo de proibido rondava os estranhos vinha em códigos e em ideias de duplo sentido ditas com malícia. "O que eu vi acontecer em volta de mim foram as empregadas, as vizinhas e as outras mães de meus amigos dizendo coisas com certo riso. E você compreendia que aquele tom fazia referência ao sexo."

A carga da "erotização doméstica" plantada em Tom na infância se manifestou ao menos uma vez, em 1990, quando ele fazia um show em Taubaté, no interior de São Paulo. "Cheguei ao palco e vi que a plateia era formada só por donas de casa. E então, comecei a criar um roteiro de músicas maliciosas." As senhoras entenderam o recado e devolveram a piscadela. "E eu pensei: é aqui que eu quero brincar."

Mães poderiam ninar seus filhos com canções eróticas sem que mães nem filhos percebessem. A não ser que o filho fosse Tom Zé. Pela cabeça do menino que tentavam higienizar nas missas de domingo passava um filme pornográfico quando ele ouvia O Cravo Brigou Com a Rosa. "O cravo brigou com a rosa / debaixo de uma sacada / o cravo saiu ferido / e a rosa despedaçada." Se dissesse ao padre a interpretação que dava aos versos da cantiga, seria excomungado pelo Vaticano. "O padre poderia não saber, mas isso é uma grande armação do folclore. A libido entra por sua cabeça de maneira avassaladora pelos seus 11 ou 12 anos. E quem toma conta daquele inferno? Esta letra é a descrição de um defloramento absolutamente ipsis litteris." Depois veio Ciranda da Rosa Vermelha, outra tentação. "Sou rosa vermelha / Ai! meu bem querer / Beija-flor, sou tua rosa / E hei de amar-te até morrer", dizia a letra que atiçava o baiano. "A única parte vermelha do corpo de uma mulher em Irará era a vagina."

Livre dos pecados

A perda da inocência não foi um processo rápido na vida de Tom Zé. Quando tinha 15 anos, ouviu do amigo Fernando a grande revelação: "Tom, quando eu for adulto quero casar logo para não viver em pecado". A sensação foi de que a pergunta que ele fez a si mesmo ao ouvir isso ecoou em sua cabeça como o grito em um túnel. "Como é que é?" Quer dizer que papai fornica com mamãe? "Não! Meu pai e minha mãe?" Até então, aos 15 anos, Tom Zé tinha a firme convicção de que as crianças eram trazidas não pelas cegonhas, mas pela natureza.

Se a mãe natureza trazia os meninos, as Marias Bago Mole os engoliam quando eles faziam 10 ou 12 anos. As mulheres lembradas por Tom Zé como senhoras generosas e proativas, longe de serem prostitutas, eram a primeira experiência de muitos garotos de Irará. "Não eram lotadas em nenhuma secretaria, não eram funcionárias públicas, mas tinham o espírito dadivoso de socorrer os meninos, era o socorro didático", diz ele. O mesmo amigo Fernando volta à cena em suas memórias. "Ele tinha uns 10 anos no dia em que uma senhora de uns 40 começou a rodeá-lo como se fosse coisa de feitiçaria. Ela o chamava de Seu Fernando." Foi em sua homenagem que surgiu a música Maria Bago Mole. "Guilherme se requebra / Rufino bota pó / Euclides morde o braço / Das Dores fala só / João Régis diz que é vi é don e é ado / Germino Curador por Dalva foi surrado / Lucinda sobe e desce / Tiririca bole-bole / mas todos passam bem com Maria Bago Mole."

A pianista voluptuosa que o hipnotizou na infância de Irará o fez perceber que Deus também poderia estar por trás daquela história. A libido que o dominou não parecia obra de Satanás. "Senti que era a presença de Deus." Mas um Deus que, ironicamente, não parecia estar em nenhuma Igreja. "A Igreja me parecia inimiga das mulheres. Qual a religião que não é inimiga das mulheres?", pergunta, minutos antes de começar a despir-se subitamente para fazer as fotos. Antes, lembra de outra canção que o invadiu e atiçou seus anjos e seus demônios mais recentemente, mesmo tantos anos depois de Antonio José redimir-se de seus pecados virando Tom Zé. "O marido ficava muito enciumado quando sua mulher, a Paula, ia colocar o saco de lixo na rua. E então ele cantava: 'Paula dentro e o saco fora...'. Que coisa mais bem achada, não é rapaz?"