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'Mommy', um dos principais longas do ano que se encerra

Redação Folha Vitória

São Paulo - Contra as mais de mil salas de O Hobbit - A Batalha dos Cinco Exércitos em todo o País, Mommy entra num circuito reduzido em São Paulo. Mas são as salas de ponta da cidade, quando se fala em cinema de arte. Faz sentido. O terceiro Hobbit pode ser o melhor da série, mas o novo longa do canadense Xavier Dolan é a prova irrefutável de que, em sua curta e vitoriosa trajetória, ele não para de crescer, como artista. Aos 25 anos - nasceu em 1989 -, fez uma série de curtas e especiais para televisão. Em 2009, seu primeiro longa, J’ai Tué Ma Mère, Eu Matei Minha Mãe, marcou sua entrada na seleção oficial de Cannes. Desde então, quase todos os demais filmes de Dolan estiveram no maior festival do mundo, em diferentes seções do evento.

Les Amours Imaginaires, Laurence Anyway. A exceção foi Tom à la Ferme, no ano passado, que ele enviou para Veneza. Este ano, com Mommy, Dolan chegou à competição de Cannes e se converteu no mais jovem autor a concorrer à Palma de Ouro. Não levou o cobiçado prêmio, mas o júri presidido pela cineasta Jane Campion não deixou por menos e Dolan, o mais jovem candidato, dividiu o prêmio especial com o mais velho - Jean-Luc Godard, de 84 anos, que também concorria com Adieu au Langage/Adeus à Linguagem. É muito interessante falar-se justamente de linguagem. Desde que irrompeu, como chefe de fila, na nouvelle vague, Godard foi sempre o grande revolucionário da linguagem e da política, que, no fundo, para ele, sempre foram uma coisa só. Octogenário, Godard despede-se da linguagem, mas não do cinema. Dolan, por sua vez, está apenas começando.

Filólogo, pesquisador, JRR Tolkien criou línguas para seus povos/espécies, convencido de que elas deveriam preceder a história de seus livros. Para ser fiel a ele, Peter Jackson, diretor de O Senhor dos Anéis e O Hobbit, fez toda uma revolução tecnológica para conseguir colocar na tela a alma de seus atores - e dos personagens de Tolkien. Essa questão da linguagem, presente em autores díspares - Jackson, com quem Dolan divide a estreia na cidade; Godard, com quem dividiu o prêmio em Cannes -, não é estranha ao cineasta. É mesmo essencial para o jovem ator e autor. A primeira sensação que o espectador terá assistindo a Mommy é de estranhamento. Os personagens parecem gritar as falas, ao invés de dizê-las. E falam num dialeto francófono de Montreal que está longe de ser um francês castiço. Como se não bastasse o recurso oral, há a linguagem do próprio filme. Dolan reduz o quadro, mais ou menos como Marcelo Gomes e Cao Guimarães fizeram em O Homem das Multidões.

Com isso, nós, o público, somos colocados na condição de voyeurs, espiando os personagens que ele coloca em cena. Linguagem, linguagem, linguagem. A palavra, como o corpo.

Em Cannes, o diretor confessou, meio brincando, meio sincero, que, quando fez o primeiro longa, realmente queria matar sua mãe. Agora, com Mommy, ele realiza alegremente a revanche de sua mãe. Na ficção, ela é interpretada por Anne Dorval, atriz fetiche de Dolan. A trama pega carona numa polêmica lei que permite às famílias - aos pais - internarem os filhos com distúrbios de comportamento, sem necessidade de diagnóstico médico.

O protagonista da história é um garoto que sofre de déficit de atenção, e se trata de uma doença. Por conta disso, torna-se um peso para a mãe, que tem sua guarda integral e dá duro para sobreviver - numa atividade que, vejam só, também lida com palavras. A mãe, até para se livrar do filho, o interna. Ele conhece o inferno, um pouco como os jovens protagonistas de Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky, e Boa Sorte, de Carolina Jabor, mas a pegada é outra. Entra em cena a vizinha que se oferece para ajudar. E, para lá do desequilíbrio, surge um novo equilíbrio e a possibilidade de esperança.

Mommy foi indicado pelo Canadá para concorrer a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro. Na luta da pré-indicação, concorre com o brasileiro Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro. Mommy abre-se muito bem, como uma daquelas fantasias científicas distópicas de David Cronenberg, e logo encontra sua via, que é a do psicodrama estilo Vida em Família, de Ken Loach, com roteiro de David Mercer. O quarto de século está fazendo muito bem a Dolan. O ego do enfant terrible, que complicava seus filmes anteriores, ‘aterrissou’, como ele próprio disse em Cannes. Todos temos a ganhar com isso. Mommy entra para ser um dos melhores filmes do ano.

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