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Várzea paulistana tem de 'terrão' a produto licenciado e grama artificial

Redação Folha Vitória

O Botafogo de Guaianazes é dono de uma sede própria de 240 metros quadrados perto do CEU Jambeiro. Seu campo tem grama sintética que exige R$ 18 mil por ano em manutenção. O uniforme, inspirado no Botafogo carioca, tem cinco patrocinadores fixos. O time tem um parceiro que ajuda na fisioterapia e produção dos uniformes.

No mesmo bairro, o campo da Liga Esportiva de Guaianazes, a antiga cancha do River Plate, tem grama só nas laterais, no meio é terra batida que levanta um poeirão em cada dividida. Os próprios moradores aparam a grama e fazem a limpeza do córrego que passa perto na linha lateral. Querem evitar doenças quando os meninos vão buscar a bola que cai lá depois de uma bicuda. A renda vem da lanchonete e do aluguel dos campos. São R$ 600 por time para um torneio que vai até novembro.

Essas duas faces da várzea paulistana estão separadas por apenas três quilômetros ou nove minutos de carro como atesta o GPS.

Essas paisagens não estão só em Guaianazes, quase na linha de fundo da zona leste, mas se multiplicam por toda a cidade. O Ajax da Vila Rica, o "Lobão da Vila", vende seus uniformes em uma barraquinha na beira do campo - aceita cartão - e também na loja Granzotti, tradicional na região. Na zona sul da cidade, o campo do Flor de São João Clímaco, que antes era de chão batido, quase sem grama e cheio de morrinhos e buracos, foi substituído por um vistoso e verdinho gramado sintético.

Alguns campos contratam locutores para os grandes jogos. Inúmeros clubes estampam suas marcas em chaveiros e relógios. "Esse é o crescimento normal do futebol. A modernidade valoriza o futebol amador", diz Itamar de Jesus, presidente do Botafogo.

A modernização muda também o jeitão das competições. Hoje, o principal torneio da várzea é inspirado na Liga dos Campeões da Europa e oferece ao campeão uma taça que é a réplica da "orelhuda", o troféu que Cristiano Ronaldo e Salah vão disputar no dia 26 de maio, em Kiev. Anos atrás, havia até álbum de figurinhas dos jogadores amadores.

O antropólogo Enrico Spaggiari, que defendeu a tese "Família joga bola. Constituição de jovens futebolistas na várzea paulistana" em seu doutorado na USP, em 2015, explica que o futebol amador se espelha cada vez mais nas práticas do futebol profissional. "Existe um movimento de aproximação da várzea ao futebol profissional. Por isso, a grama sintética, que representa uma ruptura com os campos de terra, e a venda de produtos licenciados", diz o especialista. "Muitos representantes dos clubes citam a expressão profissionalização da várzea", completa.

"Somos contra. Grama e terrão são a várzea verdadeira", sentencia Otacílio Ribeiro, integrante da Sociedade dos Clubes Mantenedores do Complexo Esportivo de Lazer e Cidadania do Campo de Marte. Como já deu para perceber pelas palavras de Otacílio, o Campo de Marte, na porção norte da cidade, representa a tradição. São seis campos utilizados semanalmente por cerca de cinco mil pessoas, entre jogadores e torcedores. A bola corre em chão de terra batida, algumas redes dos gols precisam de remendos urgentes.

A área é famosa por outra razão. Após uma longa disputa judicial com o Ministério da Defesa pela posse do terreno, os defensores dos campos de várzea da região conseguiram um acordo para que a área fosse administrada pelo município. Ali serão construídos um parque público, o Museu da Aeronáutica e um Centro Desportivo Comunitário.

A modernização também mudou a relação dos jogadores com os times amadores. Em alguns deles, os craques são contratados - sim, algumas equipes da várzea pagam seus atletas - para atuar duas ou três por semana em diferentes regiões da cidade. Uma van leva e busca os grandes talentos. Cada partida vale entre R$ 150 e R$ 300.

No campo da liga de Guaianazes, o papo é outro. "Já tinha gente no campo desde às 6h30", conta Claudio Clementino dos Santos, presidente do Paradão. Os jogos vão acontecendo e os jogadores de várias regiões da cidade param nem que seja por meia hora para a famosa resenha. "A várzea não representa apenas o futebol em si, mas define formas de sociabilidade, com o churrasco e a confraternização do final de semana", diz Aira Bonfim, pesquisadora do Museu do Futebol, entidade que se debruça sobre o tema, visita a várzea com frequência e possui acervos fotográficos e documentais das equipes centenárias.

As fontes de financiamento também são diferentes. No Campo de Marte, o dinheiro para manutenção dos clubes sai das mensalidades dos associados, de empresários locais e de eventos comunitários. No total, os clubes possuem dois mil associados que pagam mensalidade entre R$ 20 e R$ 25. Os patrocinadores fixos do Botafogo garantem uma verba de mensal de R$ 4 mil.

Em todos os casos, o financiamento público também é uma boa fonte de irrigação. Mas ela é indireta. Não existe uma política pública definida de financiamento do futebol amador. Com isso, surgem ações pontuais nos momentos de campanha eleitoral para vereador ou deputado estadual. "Existem torneios com o nome do vereador de uma região", exemplifica Spaggiari.

Modernos ou tradicionais, os campos mantêm uma relação calorosa com o passado. É quase uma reverência. O Botafogo se orgulha de ter vários jogadores que viram seus pais atuando ali e decidiram continuar a tradição. Não é estranho colocar juventude e tradição na mesma frase. O time do bairro também é um sinal de identidade, de quem sou. "Quando venho aqui, eu me lembro da minha infância", diz o motorista Edvado Maciel, olhando para o campinho com a terra batida desde sempre.

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