As manifestações de junho como fato e versões

Rodrigo Medeiros

1. Observações iniciais. O que é mais interessante em termos de reflexão política: o fato ou suas versões? Não estou sugerindo que um exista sem o outro, mas o que mantém um fato histórico vivo parece ser o rol de disputas políticas por suas versões. Vejamos um fato muito conhecido da história humana contemporânea. Contam alguns estudos historiográficos que quando eclodiu o ataque popular à Bastilha, em 14 de julho de 1789, coube ao duque de La Rochefoucauld a honra e a infelicidade de acordar o rei da França. Luís XVI perguntou se ele estaria lidando com uma revolta naquele momento. O duque retorquiu: “não, Majestade, trata-se de uma revolução”.  A política não é feita apenas de elementos objetivos; há que se considerar a força dos símbolos, além das eternas disputas políticas pelas versões dos fatos passados.

Não irei sugerir que sabemos efetivamente hoje quais serão os desdobramentos das manifestações de junho de 2013. Ainda estamos buscando compreender melhor o que se passou e as redes sociais pulsam 24 horas ininterruptamente. Creio, entretanto, que viveremos outras ondas de protestos sociais no Brasil nos próximos tempos. Resta saber se as novas manifestações desembocarão em mudanças institucionais estruturais em nosso país. Não tenho todas as respostas neste momento. No entanto, alguns sinais parecem claros. Para quem aceitou um “fim da história” à la Fukuyama, o presente não poderia ser mais assustador.  Questões que envolvam os temas liberdade, igualdade e fraternidade não apresentam apenas uma única resposta de modelo capaz de organizar sociedades complexas.  Os mercados não podem resolver por si só todos os problemas da convivência cívica e são necessárias, portanto, algumas limitações. Mas quem fixaria tais limitações e qual seria a sua extensão? Ideias e posições de esquerda, direita ou do centro político? Não se deve excluir de antemão soluções políticas híbridas que sejam capazes de combinar, por exemplo, eficiência econômica (direita) com proteção social (esquerda). O Brasil precisa de soluções institucionais criativas, que os seus partidos políticos funcionem de forma mais aberta e democrática, podendo muito bem dispensar radicalizações ideológicas ultrapassadas.

O mês de junho de 2013 marcou inegavelmente a história brasileira. Milhares de pessoas foram às ruas protestar e a indignação generalizada não podia ser simplesmente negligenciada pelos mais atentos observadores da vida nacional. Os protestos foram multifacetados e não podemos dizer hoje que o clima das ruas “passou”. Há aspectos que ainda estamos digerindo e que poderão se manifestar de forma intensa daqui para adiante. O evento do dia 11 de julho, o “dia nacional de lutas”, convocado pelas principais centrais sindicais brasileiras, apresentou número de adesões bem abaixo do que vimos nas ruas em junho. Praticamente nada do que se observou no dia 11 de julho era novo em termos de organização social; algumas das demandas foram simplesmente copiadas dos cartazes de junho. O Movimento do Passe Livre (MPL) pode até ter sido considerado como o estopim do crescimento das manifestações de junho, porém ficou claro que não foram os tais vinte centavos que levaram milhares de pessoas às ruas. Do ponto de vista simbólico, ter tocado na dura rotina da vida nas grandes cidades brasileiras foi o mérito do MPL.

Escrevi alguns artigos sobre esse debate das manifestações de junho ultimamente e, de certa forma, acabarei repetindo algumas argumentações nestas breves reflexões e provisórias conclusões.  Acredito estarmos discutindo um processo ainda em curso e do qual já se disputa a perspectiva política do fato. Existem basicamente três dimensões entrelaçadas da vida humana que nos ajudam a compreender os protestos nas ruas – econômica, política, social. 

2. A dimensão econômica das manifestações. Perda de dinamismo econômico (crescimento) com inflação persistentemente elevada, desindustrialização prematura, algo que, por sua vez, afetou a classe média tradicional, e uma economia que gera majoritariamente empregos que pagam até dois salários mínimos não esgotam o rol das explicações satisfatórias. Segundo apurou o Data Popular para o perfil dos manifestantes, 45% ganham até cinco salários mínimos, sendo 15% até dois salários, e quando consideramos os outros 55%, notamos que os filhos da classe média tradicional estiveram nas ruas buscando formar opinião com cartazes e faixas.  A internet está presente em aproximadamente 52% dos lares brasileiros e o papel das redes sociais é praticamente indiscutível nas manifestações, das fases de convocação, discussões ininterruptas até as ruas. Entre os entrevistados, 81% se mostraram favoráveis aos protestos e 68% declararam que melhoraram de vida nos últimos anos. Interessante notarmos que 87% acreditam que melhoraram de vida por conta própria. Não nos deveria causar espanto, portanto, que as instituições de Estado e políticas tenham sido questionadas nas ruas. Oito em cada dez brasileiros avaliam de forma ruim a saúde pública e sete em cada dez avaliam da mesma forma a educação pública. Os transportes coletivos são motivos de insatisfação para 77% dos entrevistados. As caixas pretas das relações preços-qualidades dos serviços ofertados, públicos e privados, aparentemente incomodam a nossa sociedade, pois já vivemos numa economia na qual os serviços respondem por 70% do PIB.  “Vitimados” pela carga tributária elevada, 35% do PIB, muitos cidadãos não enxergam o retorno qualificado na oferta de serviços da parte do Estado brasileiro.

3. A dimensão política. Do ponto de vista político, Lenin observou certa vez que as revoluções só poderiam ocorrer sob duas condições: os governados não aceitariam mais continuar sob um governo à moda antiga e os governantes não poderiam continuar governando como antes.  O desejo de mudança integra a tensão latente entre revolta e revolução social. Não sabemos o que irá ocorrer exatamente no Brasil. Há algumas pistas numéricas. Segundo o Data Popular apurou sobre os manifestantes, 63% têm entre 14 e 29 anos e 43% afirmaram ter o ensino superior completo. O índice geral de desconfiança das instituições foi de 65,6% e, nesse sentido, precisamos reconhecer que a forma de se fazer política envelheceu no Brasil. A crise da representação política é fenômeno mundial, porém a situação no Brasil parece ser mais desconfortante para o status quo institucionalizado. Segundo levantamento da Transparência Internacional, 81% dos brasileiros consideram os partidos políticos “corruptos ou muito corruptos”, acima dos 65% da média internacional de 107 países.  Felizmente em nosso país, as pessoas ainda confiam no poder transformador do voto.  

4. A dimensão social. Conforme revelam números confiáveis, houve melhoria geral na renda dos brasileiros nos últimos anos. Essa evolução, no entanto, não ocorreu de forma homogênea. O instituto Data Popular levantou que entre os mais ricos (classe alta), os filhos ganham 47% da renda dos pais enquanto na classe média, 89%. A renda dos mais pobres cresceu em ritmo chinês, porém as desigualdades sociais persistem em nosso país.  Trata-se de algo bastante compreensível a reclamação generalizada quanto ao mau funcionamento dos serviços públicos básicos. Pode-se também compreender que os mais ricos desejam aliviar a renda doméstica dos reajustes anuais de planos de saúde e escolas privadas ao passo que as camadas emergentes desejam melhores serviços públicos para si e os seus familiares. Padrão Fifa para os serviços públicos ofertados? Lamentavelmente ainda não somos um país desenvolvido e o debate sobre o financiamento de um “padrão Fifa” certamente dividiria corações e mentes.

5. O debate político (considerações finais). A crise da representação política é fenômeno mundial e o Brasil encontra-se imerso nesse olho de furacão. Seria possível operarmos ajustes no sistema político brasileiro de forma a adequarmos o mesmo ao novo tempo demandado pelas manifestações de junho? Creio que não se trata apenas de fazer um simples “ajuste” no modelo vigente. Vejamos dois pontos de vistas qualificados. Segundo afirmou o professor Vladimir Safatle, “para oferecer serviços públicos gratuitos e de qualidade, é preciso uma reforma tributária realmente de esquerda, mas que não pode ser feita dentro do atual modelo de governabilidade”.  Para a professora Yvonne Maggie, “o povo nas ruas pedia reforma dos políticos”.  Não se pediu brioche, pois o povo não estava faminto. Recorro novamente à instigante análise da professora: “aquela cena do povo em cima do Congresso brasileiro literalmente nada tem a ver com as descrições da queda da Bastilha, sobretudo porque o Congresso continua lá, firme e a Bastilha foi abaixo. A Bastilha era uma prisão que representava a iniquidade da monarquia francesa, e o edifício das duas cúpulas que compõem o Congresso é, hoje, o símbolo máximo da democracia corrompida. Há algo em comum, pelo inverso”. O que se pode pensar nesse contexto do ponto de vista político? Renovação parece ser a palavra-chave e, nesse sentido, resta esperarmos que os partidos políticos brasileiros não adotem institucionalmente a moral de Lampedusa: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude” (‘Il gattopardo’, 1956). Não precisamos de mais uma revolução conservadora. Ainda não vencemos o subdesenvolvimento e as perspectivas de baixo crescimento sustentado, com desindustrialização e inflação persistentemente elevada, não apontam que teremos facilidade pela frente. Não há como negar que estejamos efetivamente vivendo um momento econômico e político difícil no mundo. A política precisará gerar respostas razoáveis para os impasses do momento e, para tanto, a qualidade do seu jogo precisará melhorar muito entre nós.

1 Texto preparado para o evento “Ciclo de Conversas” da Fundação Ulysses Guimarães do Espírito Santo (FUG/ES), 15/07/2013.
2Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).
3FURET, F. Pensando a Revolução Francesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
4 Em síntese, não haveria mais alternativa à democracia representativa liberal.
5 Sugiro a leitura de BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e significados de uma discussão política. 2.ed. São Paulo: Unesp, 2001.
6Publiquei artigos no jornal Folha Vitória, 09/07, 05/07, 26/06 e 20/06/2013.
7Os números do Data Popular utilizados neste texto foram extraídos da apresentação do diretor Renato Meirelles chamada “Oportunidades e desafios no novo Brasil” (julho de 2013).
8Sobre problemas de regulação econômica no Brasil: HARTUNG, P.; MEDEIROS, R. Regulação econômica. A Gazeta, 05/04/2013. Aponto um trecho do artigo: “Há, nesse sentido, perplexidade na constatação de que a privatização de certos serviços de utilidade pública não tenha entregado até o momento a qualidade esperada na oferta. Os preços subiram bastante desde as privatizações dos anos 1990, porém a qualidade dos serviços ainda deixa muito a desejar”.
9HALLIDAY, F. Por que as revoluções acontecem? SWAIN, H. (org.) Grandes questões da história. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
10Cf. matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo (09/07/2013) sobre a pesquisa feita em março.
11Data Popular, julho de 2013.
12Índice Gini acima de 0,5. Países desenvolvidos têm aproximadamente 0,3 de Gini, com um desvio para cima dos EUA.
13Os limites do governo. Carta Capital, 10/07/2013 <https://www.cartacapital.com.br/revista/756/os-limites-do-governo-5731.html>.
14Não tem pão, comam brioches! G1, 11/07/13 <https://g1.globo.com/platb/yvonnemaggie/2013/07/11/nao-tem-pao-comam-brioches/>.

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