Sobre a banalização do mal

Fui ao cinema nos últimos dias ver o filme “Hannah Arendt”. Para quem conhece um pouco a obra da filósofa, a película é muito atraente. Apesar de ser relatado o episódio do julgamento do nazista Eichmann, em Israel, compreendo existirem algumas reflexões que podem ser estendidas ao tempo presente. Afinal, quando se considera a perda generalizada de credibilidade das instituições brasileiras divulgada recentemente pelo Ibope, penso que o momento é oportuno para a reflexão crítica. 

O filme aponta que Hannah Arendt buscou mostrar em artigos publicados na revista The New Yorker que nem todos que cometeram crimes de guerra eram monstros e sugeriu ainda a cumplicidade de judeus na perseguição sofrida por esse mesmo povo. Ela enfrentou a fúria da “opinião pública”, que, por sua vez, não buscou compreender a sua argumentação filosófica de que os nazistas eram efetivamente culpados por crimes contra a humanidade. Arendt defendeu o argumento de que era necessário se buscar compreender o contexto e o sistema político que se consolidou naqueles tempos sombrios.

Em síntese, a banalização do mal se processava pela burocratização da atividade humana no Estado nazista; todos cumpriam ordens, ou seja, com suas obrigações e não havia a necessidade de maior reflexão. Não havia, portanto, a necessidade de se questionar o conteúdo dessas obrigações e tampouco de se confrontar moralmente suas nefastas consequências. Quando um povo simplesmente desconsidera que “o outro” também integra a humanidade, os perigos de que atrocidades sejam cometidas estão sempre presentes. Creio não ser necessária uma análise maior dos conflitos regionais contemporâneos para se reconhecer a atualidade do pensamento de Arendt: “o homem é um animal social antes de ser animal político” (em ‘A condição humana’, 1958). A discussão sobre as esferas públicas e privadas ainda é bem atual.

O filme me fez refletir novamente sobre as manifestações sociais de junho, especialmente sobre os sete dias que abalaram o Brasil, cujo ápice se deu no dia vinte. Até que ponto a insensibilidade social da velha política brasileira e a excessiva burocratização institucional a qual estamos submetidos diariamente têm algo a ver com a banalização do mal descrita por Arendt, guardadas as devidas proporções? Vivemos em um regime de democracia política, marcado por grandes e persistentes desigualdades sociais, e dificilmente se poderia negar que a indiferença com o sofrimento do “outro” integra parte do drama da precariedade de muitos serviços públicos brasileiros, inclusive daqueles prestados por concessionários privados.

Creio que não temos apenas um problema de gestão pública no Brasil. Trata-se mais de um problema político, algo que reflete a qualidade do animal social que vem prevalecendo nesse jogo. A perversa tradição patrimonialista que herdamos não deve condenar o Brasil a reproduzir impasses e dilemas políticos. Felizmente há bons quadros políticos entre nós e o nosso povo ainda acredita no poder transformador do voto. A renovação da cultura política em alto nível é demanda das ruas e creio ser oportuno que os partidos a facilitem logo adiante. Em alguns aspectos o Brasil melhorou nos últimos anos, porém persistem entre nós as grandes desigualdades sociais e os precários serviços públicos em um contexto de elevada carga tributária regressiva.

Rodrigo Medeiros é professor do Ifes

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