2020: o ano em que fomos testados

Uma análise da Transparência Capixaba sobre corrupção,
democracia e transparência pública.

“A corrupção dos governantes quase sempre começa com
a corrupção dos seus princípios.” (Montesquieu)

Será impossível às futuras gerações da humanidade ler as páginas de história sem o devido destaque ao ano de 2020 como aquele que nos confrontou com um inimigo mortal e silencioso: a pandemia de COVID-19 que dizimou milhões de pessoas ao redor do mundo e criou uma nova realidade para outras bilhões que passaram a conviver com regras sanitárias e novas formas de interação social, política, educacional e até mesmo institucional. Fomos literalmente testados: em nossa fé, nossa esperança, nossos valores, nossa empatia e solidariedade, nossa capacidade intelectual e científica e, por fim, em nossa saúde física e mental.

Não há dúvida de que, após um tempo inicial de atordoamento geral da comunidade científica e política, houve lições e aprendizados e, embora ainda pouco se saiba sobre o real impacto da doença na vida das pessoas e na economia global, caminhamos para uma perspectiva mais otimista em relação a vacina e ao esforço mundial para nos readaptarmos a essa nova realidade.

Também não faltarão análises estatísticas, sanitárias, científicas e políticas sobre o ano que se finda neste mês e é fundamental que esse debate nos ajude a compreender e seguir buscando a melhor maneira de aceitarmos uma realidade evidente: a humanidade viveu uma mudança paradigmática extraordinária.

Nesse sentido, a Transparência Capixaba, Organização Não Governamental sem fins econômicos ou vínculos partidários, na esteira de tais análises e aproveitando a data de hoje que marca o Dia Internacional Contra a Corrupção, também deseja contribuir com este documento contendo a nossa visão sobre o ano de 2020 e de como a crise sanitária pandêmica afetou nossa democracia e as instituições de controle e combate à corrupção, obviamente, sem a pretensão de criarmos um documento definitivo, mas uma contribuição ao debate público e à reflexão acerca de nossos rumos, resgatando a memória política acerca:

1) Das compras e contratações emergenciais;

Inicialmente, em se tratando de períodos de emergência, nada fala mais alto do que a necessidade absoluta e premente de agilizarmos os processos governamentais de compras, conforme ha previsão em nossa legislação. É indiscutível que tais processos, em períodos de normalidade, seguem regras e normas de controle necessárias à lisura do processo, mas que por consequência causam morosidade ao atendimento das necessidades dos cidadãos.

O decreto de emergência, ao passo que reduziu a burocracia estatal, abriu flancos para a corrupção. E assim, em pouco tempo após os decretos de emergência terem sido editados em todo o país, tomamos conhecimento de denúncias e investigações contra gestores públicos em todas as esferas governamentais, que alheios ao caos e ao desespero da população, não perderam a oportunidade de celebrar contratos suspeitos, superfaturados e até mesmo sem a devida entrega, causando os prejuízos e desperdícios de praxe. Nesse momento, a transparência pública e o acompanhamento da sociedade civil organizada nunca foi tão importante.

Em nosso estado, com a metodologia criada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Organização Não-Governamental Transparência Internacional serviu de base para a avaliação que realizamos dos portais de transparência de 38 municípios com mais de 20.000 habitantes, estabelecendo um ranking que visava ao aperfeiçoamento do controle oficial e social das compras emergenciais. Com isso, os cidadãos também tinham a oportunidade de acompanhar o processo decisório dos gestores públicos, que perceberam que uma parte da sociedade estava vigilante e atenta, como ficou claro em alguns contratos suspeitos questionados publicamente através da imprensa ou denunciados aos órgãos de controle.

Nas avaliações dos portais de compras emergenciais realizadas pela Transparência Capixaba e pela Transparência Internacional para estados e capitais, o Espírito Santo, a capital Vitória e mais 24 municípios capixabas alcançaram o nível ótimo em transparência, resultado que revela boa vontade do controle interno dessas localidades na divulgação de informações. Lamentavelmente o governo Federal não seguiu o mesmo exemplo e sua nota no ranking ficou atrás de 21 entes federados, além de 22 capitais.

Embora a publicidade de tais compras seja um pré-requisito legal, a transparência pública é mais do que publicar, mas devolver ao contribuinte a clareza sobre os gastos públicos e permitir o controle social, seja de forma ativa ou através dos pedidos de informação regulamentados pela Lei de Acesso à Informação. Ainda que as compras tenham sido publicizadas, com a transparência a população percebeu que alguns gastos desnecessários poderiam ter sido evitados e que cada centavo economizado pelo gestor público importava para garantir a salvaguarda de vidas humanas.

Em muitos casos, pessoas mal intencionadas aproveitaram o momento para lucrar com a tragédia. As diferenças de preços de um mesmo produto variava em até 1.000% em alguns contratos e, embora tenhamos vivido momentos de elevada demanda por álcool em gel, respiradores, equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, esse tipo de consumo não poderia deixar de ser feito pelo poder público, sob pena de vivermos o caos absoluto no controle da doença e da proteção daqueles profissionais que atuavam na linha de frente. Novamente, a transparência pública nessas compras, aliada ao controle social, foi um importante sistema de freios e contrapesos para reduzir os excessos.

2) Da transparência em dados de saúde;

Os portais de dados de saúde também mostraram a importância da transparência para a tomada de decisões e para a criação de políticas públicas de atendimento à emergência e salvaguarda da população. Embora os dados iniciais tenham causado apreensão, era preciso manter a população e os profissionais e gestores da área de saúde munidos de informações estratégicas para a finalidade real a que se destinavam: salvar o maior número de vidas possível.

A criação de um ranking de avaliação dos portais de informações sobre a pandemia se mostrou uma importante ferramenta de aperfeiçoamento do Estado. A organização Open Knowledge Brasil (OKBR), uma rede de incentivo ao Conhecimento Livre criou o índice e manteve a avaliação permanente de portais estaduais e municipais de transparência, estabelecendo parâmetros desejáveis de qualidade de divulgação de informações públicas.

O Espírito Santo e a capital Vitória, apesar das primeiras avaliações não terem apresentado resultados satisfatórios, avançaram muito nas avaliações seguintes e conseguiram alcançar níveis ótimos de transparência, evidenciando o aperfeiçoamento resultante desse tipo de ranking.

Novamente, a descoordenação e até mesmo a manipulação de dados por parte do Governo Federal foi um ponto fraco do modelo de informação pública. Mais uma vez, a sociedade civil precisou lançar mão de esforços desgastantes para que as informações fossem publicadas, como a criação de um consórcio de emissoras de televisão para o tratamento e divulgação de dados.

A conta dos números de mortos não era apenas o principal dado a ser extraído desse tipo de portal, mas o próprio comportamento da doença, as comorbidades comuns à maioria das vítimas, a geolocalização dos contaminados e as condições sociais da população são informações importantes que determinam a política pública a ser adotada e as estratégias de controle. Qualquer inconsistência ou incorreção sistêmica abalaria a credibilidade governamental e nem todos os entes federados e a própria União demonstraram zelo por esses dados em diversos momentos críticos da pandemia. Sem a participação da imprensa, do sistema judicial e da sociedade civil organizada, muitas medidas teriam sido tomadas sem a devida eficácia, na contramão das boas práticas internacionais.

3) Dos gestores públicos

Apesar de uma avaliação de gestão ser algo subjetivo, podemos afirmar pelos inúmeros casos de corrupção investigados pelos órgãos de controle e denunciados diuturnamente pela imprensa que muitos falharam gravemente, não apenas na tarefa de priorizar os recursos públicos, mas também no controle e combate à corrupção. A combinação de muito dinheiro e pouco controle foi uma oportunidade perfeita para os mal intencionados.

De acordo com dados publicados pela BBC News Brasil, nos três meses subsequentes à edição da MP 926/20, que liberava gestores para as compres emergenciais, as denúncias já atingiam governos de sete Estados e valor investigado chegava a R$ 1,07 bilhão – sendo que o montante efetivamente desviado ou superfaturado, no entanto, ainda está sendo investigado pelas autoridades.

No mesmo período, mais de 800 atos normativos para o enfrentamento da pandemia já haviam sido baixados pelos gestores públicos, de acordo com a Fundação Getúlio Vargas. Dentre eles, medidas de flexibilização de compras e contratações, repasses de recursos, dentre outras regras relacionadas à administração Pública que tornam o controle mais vulnerável. Numa das medidas, o presidente Jair Bolsonaro editou medida alterando a Lei de Acesso à Informação, limitando o acesso a dados e informações prestados por órgãos públicos, além de outra regra que livrava agentes públicos de processos relativos a atos que tomaram para conter a pandemia. Temerário, para se dizer o mínimo, uma vez que a transparência e a responsabilidade fiscal são inerentes às competências dos gestores.

No Rio de Janeiro, caso mais emblemático em todo o país, a operação placebo resultou no afastamento e pedido de impeachment do governador do estado Wilson Witzel e seu ex-secretário de saúde, atualmente afastados do cargo após denúncia da Procuradoria Geral da República. Destino que, no curso de outras dezenas de investigações, também pode ser o de muitos prefeitos e de, pelo menos, mais seis governadores que ainda estão sob suspeita até o momento.

A guerra de narrativas e as disputas políticas entre governadores, prefeitos e até mesmo o presidente da República tornaram o ambiente ainda mais polarizado e caótico. A insistência do presidente em tratamentos não reconhecidos pela comunidade científica, bem como o desrespeito às regras sanitárias e de isolamento, além do fato não menos grave de dois de seus ministros da saúde terem sido substituídos num momento crítico da pandemia se somam ao oportunismo eleitoreiro, tanto de governadores e prefeitos que criaram seus próprios protocolos contrários à recomendação da Organização Mundial de Saúde, quanto de outros entes políticos populistas que difundiram notícias falsas e propagaram o negacionismo, minimizando a doença e espalhando desinformação.

O auxílio emergencial, fundamental para garantir a subsistência de grupos sociais vulneráveis cobrará um preço alto da já abalada política fiscal nacional, embora seja indiscutível a sua necessidade no momento mais difícil da pandemia, quando o isolamento social virou regra em muitos estados. Porém, como manda a responsabilidade fiscal, era preciso que o auxílio chegasse ao fim e, para tanto, nunca foi tão necessária uma união de esforços do Congresso Nacional, da União, dos estados e municípios em torno de um projeto de retomada econômica, o que não se viu no ambiente de selvageria política que vivemos ao longo do ano. Também o auxílio foi alvo de fraudes e de denúncias de corrupção, inclusive no estado do Espírito Santo onde seguem em apuração o recebimento do auxílio por parte de servidores estaduais. Em todo o país, pessoas sem direito ao recebimento do auxílio encontraram mecanismos para fraudar o erário e causar prejuízos aos cofres públicos, naquilo que demonstra que a cultura da corrupção não está apenas na esfera política.

Nesse ambiente, a própria população acaba cedendo à falta de esperança e reproduz, diante da desolação econômica e social que a preocupa, a mesma lógica que impediu o devido controle da pandemia: o desrespeito às normas, às recomendações médicas e à própria vida humana. Restou, porém, a generosidade e a empatia de movimentos de solidariedade ligados às comunidades mais carentes, religiosas ou humanitárias.

Resta à população, tomar como exemplo esses grupos altruístas e exigir que o cuidado com a população, o Sistema Único de Saúde – vital para evitar um verdadeiro extermínio de populações carentes durante a pandemia – e os direitos Constitucionais sejam uma política de Estado e não uma aparente benevolência de líderes populistas.

4) Da democracia e do sistema judicial

Durante todo o período de pandemia, as instituições democráticas viveram seus altos e baixos. Hora funcionando com sistemas de freios e contrapesos, hora agindo para limitar o poder daqueles que pensam a democracia como o atendimento dos desejos exclusivos de seus pequenos grupos, a imprensa, os órgãos de controle, o Congresso Federal e até mesmo as Organizações Não-Governamentais estiveram diversas vezes na mira dos ataques autoritários de espectros políticos extremistas.

Os atos públicos inconstitucionais promovidos por grupos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, que participou em várias ocasiões das manifestações públicas em plena pandemia, flertavam com o autoritarismo e resgatavam instrumentos da ditadura, como o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que dentre outras medidas, fechou o Congresso Nacional em Dezembro de 1968 inaugurando o período mais sombrio da ditadura militar. As tensões populares chegaram ao limite quando grupos políticos opostos se confrontaram em manifestações públicas em diversos estados brasileiros, estimulados pelo ambiente de polarização e ódio generalizado.

O sistema judicial foi responsável por várias mediações entre os poderes legislativos e executivos, atuando como regra nos conflitos políticos, quando deveria ser a exceção. A judicialização de várias ações governamentais por parte de partidos políticos, entidades de classe como a Ordem dos Advogados do Brasil e de representantes de organizações da sociedade civil virou um instrumento de controle do Estado quando o diálogo, o debate e a diplomacia política falharam.

O Supremo Tribunal Federal, apesar de controvérsias políticas, tem sido responsável por barrar diversas ações inconstitucionais, como as que flexibilizariam o cumprimento à Lei de Acesso à Informação e a responsabilização de gestores públicos por irregularidades cometidas durante o estado de emergência.

A imprensa tradicional também teve importante papel no contraponto à desinformação e à divulgação de notícias falsas. Tornou-se assim, uma âncora de credibilidade para diversas informações. Obviamente, excessos e desvios de conduta também ocorrem em algumas editorias em casos pontuais, mas o conjunto robusto do trabalho desenvolvido pela imprensa na cobertura de assuntos importantes, bem como a exposição de seus profissionais à linha de frente da doença foram, em elevado grau, reconhecidos pela maioria da população.

A Polícia Federal foi atuante e determinante em investigações de desvios e operações de combate à corrupção em diversos entes federados. A autonomia da instituição e sua estrutura de inteligência tiveram sua importância atestada pelos resultados de investigações que impediram o desvio de recursos, ou recuperaram dinheiro público que seria mal utilizado por gestores irresponsáveis e levianos.

6) Conclusão

Novamente, comprovamos pelo que vivemos que a democracia é um regime de liberdades e responsabilidades que carece, obviamente, de aperfeiçoamento, mas que caminha – ainda que em ziguezague – no sentido da legitimidade da vontade popular, contra o autoritarismo e a favor dos direitos civis, dentre os quais se destaca o direito à vida.

A corrupção pode ser reduzida e esse deve ser o objetivo das instituições democráticas e do Estado. Não aceitamos como natural ou normal que um país onde milhões vivem abaixo da linha da pobreza sejam ignorados pelas políticas públicas de saúde ou se tornem vítimas da corrupção dos agentes públicos.

A sociedade civil organizada manteve seu papel atuante fundamental na garantia de que, apesar de vários desvios e equívocos em políticas públicas, os direitos civis fossem garantidos.

O respeito institucional, a transparência e o controle social são, sem sombra de dúvidas, elementos de ordem imperativos numa crise dessa proporção. Dessa forma, nossa organização incentiva a participação ativa dos cidadãos e das cidadãs que promovam mudanças culturais e políticas profundas a partir dessa triste experiência que vivemos. Apenas assim, poderemos estabelecer o estado “normal” da vida que pretendemos para as futuras gerações.

Por fim, não menos importante, lamentamos as mais de 177.000 vidas perdidas para a doença nesse período e nos solidarizamos para com todos os seus familiares.

Vitória, 12 de setembro de 2020

Rodrigo Rossoni, secretário-geral da Transparência Capixaba.

Transparência Capixaba “Contra a corrupção, a favor do Espírito Santo, da democracia e das liberdades”

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