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Casamentos e uniões gays crescem no ES 10 anos após decisão do STF

Dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) mostram que 2021 vai ultrapassar 2018 em números de matrimônios de pessoas do mesmo sexo

Marcelo Pereira

Redação Folha Vitória
Foto: Norm Betts/Bloomberg News
Casamento gay é realidade no Brasil desde 2013 por meio do Poder Judiciário

Há 10 anos, em 2011, um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, decidiu a favor da união estável de casais homoafetivos. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que ampliou a decisão para todo o país e exigiu que os cartórios realizassem os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. 

De lá para cá, a vontade de celebrar o amor entre iguais só aumentou. Homens e mulheres deram um chega para lá no preconceito e passaram a exigir a confirmação e registro de suas histórias de amor em cartório, sob o aval da Justiça. O número só faz crescer. 

De acordo com dados levantados pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), a pedido da reportagem do Folha Vitória, até novembro deste ano, os casamentos homoafetivos no Brasil chegaram a 9623 cerimônias contra 8536 no ano passado. Já as uniões estáveis até novembro deste ano foram de 2149. No ano anterior, foram de 2182. 

O Espírito Santo também segue essa tendência crescente observada no país. Até novembro deste ano, foram 287 casamentos e 56 uniões estáveis. No ano passado,  foram 253 casamentos e 47 uniões estáveis. Ou seja, a marca de 2020, tanto à nível de Brasil como de Espírito Santo, já foi superada.

O recorde de casamentos até então, tanto do país quanto no Estado, havia sido em 2018, ano da eleição do presidente Jair Bolsonaro, contrário a avanços de direitos LGBTQIA+. 

Naquele ano, foram 9520 no país e 129 no Espírito Santo. O medo de que o direito conquistado no Judiciário fosse suspenso com a chegada do mandatário de extrema direita ao Palácio do Planalto fez muita gente correr para o cartório para garantir sua união.

Mas, 2021 superou esses números. Dois fatores podem explicar: o avanço da vacinação contra a covid-19, que permitiu o retorno dos eventos sociais após um ano de restrições devido à pandemia, e uma certa atitude em harmonia com novos tempos onde preconceito perde cada vez mais espaço, sendo que a celebração da união desses casais tem muito de recado político.

A celebrante de casamentos, jornalista e escritora de Vitória, Natasha Siviero, nota essas nuances nas cerimônias de casais gays que comanda. 

"Percebi uma retomada gradual a partir de julho e agosto e a força total mesmo veio em outubro, que já costuma ser um mês intenso para casamentos e, esse ano, foi ainda mais", calcula. 

Em outubro, 71,67% da população brasileira já havia recebido a primeira dose. No Espírito Santo, era 73% da população com a primeira aplicação e 52,63% totalmente imunizada com as duas doses ou dose única.

Os dados são do consórcio de veículos de imprensa a partir da parceria com as secretarias estaduais de Saúde.

Foto: Reprodução/Cicero Cavalli
Celebrante Natasha Siviero no casamento de Mariana e Thayna em novembro de 2021 na Praia do Rosa, em Santa Catarina

Ela, que também celebra casamentos entre cônjuges de sexos diferentes, diz que o setor está esperançoso para 2022. A vacina, que diminuiu número de casos e de mortes pelo coronavírus, veio auxiliar a vontade inata das pessoas em comemorar uniões. 

"Além das remarcações, de tanta gente que precisou adiar, com toda razão, para um momento mais seguro, queremos dar vazão a essa nossa vontade humana de celebrar nossos rituais", desenvolve.

Sobre os casamentos homoafetivos, ela nota que há um contexto a mais nas celebrações. Na percepção de Natasha, os casais gays querem celebrar o amor e também dar o seu recado ao mundo.

Foto: Reprodução/Landerson Viana
A celebrante de casamentos e jornalista Natasha Siviero diz que todo casamento homoafetivo é um ato político

"Outro dia um casal falou: 'Essa cerimônia é pelos que vieram antes, por nós, e por aqueles que ainda não têm força'. Acho que os casamentos homoafetivos têm, além do amor, essa força de quem abre caminhos. Independente do discurso do casamento, a presença de um casal homoafetivo no altar é sempre um ato político", destacou.

Números de casamentos homoafetivos no Espírito Santo

                                         Homens                                   Mulheres

2013                                      20                                               23

2014                                      41                                                22

2015                                      42                                                37

2016                                      30                                                30

2017                                      35                                                49

2018                                      66                                                63

2019                                      56                                                 87

2020                                     145                                              108

2021 (até novembro)        159                                              128

Uniões estáveis homoafetivas no Espírito Santo

2011 - 66 uniões

2012 - 55

2013 - 61

2014 - 46

2015 - 51

2016 - 47

2017 - 40

2018 - 44

2019 - 62

2020 - 47

2021 (até novembro) - 56

Fonte: Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). Nota: até 2013, só havia opção de união estável. O Conselho Nacional de Justiça determinou que todos os cartórios brasileiros celebrassem casamentos homoafetivos a partir de 2013.

Os dados compilados pela Arpen são alimentados em tempo real pelos 7.565 cartórios de registro civil do país, que devem, obrigatoriamente, enviar seus dados de nascimentos, casamentos e óbitos para a central de informações, base de dados instituída pelo provimento nº 46 do CNJ e administrada pela entidade.

Decisão pode ser modificada, mas cenário atual do STF é favorável aos direitos LGBTQIA+

Para o advogado e presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Espírito Santo (OAB-ES), Sérgio Mafra, o casamento homoafetivo no Brasil foi conquistado via Judiciário e não por força de uma lei saída do Poder Legislativo (Câmara dos Deputados ou Senado). O que torna a situação brasileira única quando comparada a outros países.

Foto: Reprodução redes sociais
Sérgio Mafra, advogado e presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-ES

"É uma decisão judicial. Portanto, ela pode ser modificada a qualquer momento pelo próprio Judiciário. Não dá garantia de que isto vai ser algo duradouro. Temos um interregno de mais de 10 anos mas cabe ao Parlamento brasileiro decidir sobre leis e sobre direitos. Só se cria obrigações e direitos através das leis e da Constituição", aponta Mafra. 

Ele ressalta que, por causa dessa ausência de decisões do Congresso Nacional, o Judiciário, ao ser provocado, teve que se manifestar através dos votos de seus ministros. 

 "O Supremo Tribunal Federal (STF) veio e supriu o que a gente chama de "mora" (demora) do Congresso Nacional. O STF foi lá e introduziu essa garantia que já tinha na Constituição, que é uma garantia muito ampla, que é o direito às liberdades contidas no artigo 5º", desenvolve.

A garantia do casamento gay no Brasil pela justiça sem a proteção de um projeto de lei abre brecha para proibições e decretos que possam ser efetivadas pelo presidente e sobrepor às decisões do STF. 

Mafra diz que a possibilidade de que haja retrocesso em relação ao casamento homoafetivo na esfera do Judiciário existe mas é bastante remota. Ele lembra das recentes indicações ao STF do presidente Bolsonaro com perfil mais conservador. 

O presidente da República indicou (e o Senado aprovou) os ministros Nunes Marques, em novembro de 2020, e André Mendonça, neste mês de dezembro. Mesmo assim, o placar seria favorável aos direitos LGBTQIA+. 

"Sobre decisões do Supremo, elas podem ser reformadas. Principalmente com esses novos ministros que tomaram posse e que já têm um viés um pouco mais ideológico referente à questão religiosa. Há uma possibilidade de retrocesso mas, contextualizando, temos 11 ministros e, desses 11, apenas dois são dessa nova leva. Tendo em vista que as decisões anteriores que criaram esses direitos são praticamente unânimes (ou seja, 11 ministros votaram a favor), nós teríamos hoje um placar com 9 ministros a favor e dois contra", explica.

Ele também diz que, mesmo se o Congresso Nacional aprovasse uma lei não permitindo mais a união civil ou casamentos homoafetivos, o STF iria se manifestar. 

"Caberia ao Supremo se manifestar novamente sobre essa lei e declarar a inconstitucionalidade dela, que seria um outro contexto. Nas primeiras decisões, nós tivemos arguição de preceitos fundamentais. Essas decisões foram feitas por causa da demora do Parlamento em criar essas garantias. O STF vem, faz-se a lacuna legislativa que a gente tem, vai lá e fala: "Vocês não fizeram, então, a gente vai fazer". 

Mas, caso o Congresso crie uma restrição ou lei que retire direitos, cabe ao STF como o guardião da Constituição, com base na questão da inconstitucionalidade de tal lei, que ela vai de encontro à previsão do artigo 5º da Constituição Federal, ele pode fazer essa mudança. De certa maneira, a gente tem uma garantia", reforça.

Qualquer maneira de amor vale a pena

A reportagem do Folha Vit´´oria entrevistou dois casais gays para que contassem suas histórias, suas descobertas da própria sexualidade e seus sonhos relacionados ao casamento. 

A advogada Francelle Barcelos, 30 anos, a Fran, e a bancária Brunella Venturin, 34, vão se casar em fevereiro de 2022. 

"Eu sou uma pessoa muito resolvida, e com a sexualidade não seria diferente. Me entendi muito nova, e contei aos meus pais, irmãos e amigos. Foi um simples 'Sou mulher e gosto de mulheres'. Minha família e meu núcleo de convívio sempre me acolheu, mas sei que essa é uma realidade isolada. Infelizmente muita gente não tem a mesma sorte que eu. Ter espaço e se sentir bem para falar da própria sexualidade é um grande privilégio, mas não deveria ser. Ninguém se sente privilegiado por poder dizer que é heteroafetivo, entende?", ressalta Fran.

Foto: Reprodução / Instagram
Brunella Venturin (esq.) e Francelle Barcelos: casamento sai em fevereiro de 2022

"Casar nunca foi um sonho para mim, até que a Fran surgiu. Ela, o amor e as novas perspectivas que a pandemia trouxe, fizeram uma revolução em mim e casar e ter filhos passaram a ser o plano mais óbvio, mais certo, mais lindo", derrete-se Brunella. 

Foto: Reprodução / Instagram
Thales Dias (esq.) e João Lucas Cortes optaram por união estável

Já o casal João Lucas Cortes, 30 anos, e o coordenador de inovação Thales Dias, 26, optaram pela união estável e assinaram o documento no mês passado. 

"Eu demorei um pouco mais para conhecer, aceitar, assumir a minha sexualidade. Foi um processo doloroso e bastante solitário. Minha mãe, quando eu tinha 19 anos, mais ou menos, me perguntou se eu era gay. Fiquei bastante surpreso e com medo, mas como houve uma abertura dela para falar sobre o assunto, respondi afirmativamente a pergunta".

"Não foi fácil para ela ouvir o “sim”, mas mais pela pressão social que envolve, pela pressão religiosa da minha família e menor por ela. De início, ela pediu que eu não contasse para meus irmãos (10 anos mais novos) e para as outras pessoas. Mas, com o tempo, fui desmistificando as questões de gênero e sexualidade para ela e vi a aceitação crescendo", relembra Cortes.

Seu marido, Thales, reforça que o direito de união é um avanço. Segundo ele, ser um homem gay não o resume, mas é uma parte importante de quem ele é. 

" Nosso amor é particular, mas também público e legalmente reconhecido. Os preconceitos e barreiras são inúmeras, alguns acompanhados de retrocessos, mas temos vencido batalhas. No passado, era crime casamento entre pessoas de cores diferentes, assim como um tempo atrás era crime pessoas do mesmo sexo casarem. Estamos caminhando e nossa união é a celebração pública e reconhecida do nosso amor, assim como a vida dos que não puderam desfrutar desta conquista", compara.

O que é necessário para realizar um casamento gay no Brasil?

De acordo com o Colégio Notarial do Brasil, o procedimento a se realizar é o mesmo dos casais héteros: levar a documentação necessária e se casar com juiz de paz. No caso de pessoas que já vivem com o parceiro(a), podem ir ao cartório e transformar a união estável em casamento.

Caso haja recusa do cartório em realizar o casamento, o casal pode e deve entrar com recurso ao juiz da comarca ou no Conselho Nacional de Justiça (que criou a Resolução 175), com a alegação de violação da resolução nº 175 e violação dos direitos humanos.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma questão com base nos Direitos Humanos Universais, e que está amparada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que reconhece que o casamento é um direito que assiste a todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual.

Veja as diferenças entre o casamento gay e a união homoafetiva

CASAMENTO GAY

LOCAL: feito no Cartório de Registro Civil

DOCUMENTO: os cônjuges (dois homens ou duas mulheres) recebem uma certidão, da mesma forma que os casais heterossexuais.

SOBRENOME: podem mudar o sobrenome ou misturá-los da maneira que quiserem: um fica com o sobrenome do outro e vice-versa.

ESTADO CIVIL: muda para casado ou casada.

PATRIMÔNIO: os dois ou as duas podem estabelecer o regime de bens que considerarem melhor (comunhão total, separação total, comunhão parcial etc.).

HERANÇA: se um dos dois cônjuges morrer, o viúvo ou a viúva é herdeiro necessário, dependendo do regime de bens que tiverem escolhido.

FILHOS: no casamento, há sempre a presunção da paternidade, o que significa que os cônjuges são sempre o pai ou mãe da criança. Se o casal gay tiver um filho, por inseminação ou vias normais, terá o direito de pôr os dois nomes na certidão de nascimento da criança.

JUSTIÇA: por enquanto, é preciso autorização de um juiz, sendo necessário, portanto, entrar com uma ação.

SEPARAÇÃO: Quando o amor acabar, o casal pode se divorciar.

UNIÃO CIVIL ESTÁVEL

LOCAL: feito no Cartório de Registro de Notas

DOCUMENTO: os cônjuges (dois homens ou duas mulheres) assinam uma escritura.

SOBRENOME: para mudar de nome, os cônjuges têm de ter autorização do juiz.

ESTADO CIVIL: a pessoa continua com o estado civil de solteira.

PATRIMÔNIO: os dois ou as duas podem estabelecer o regime de bens que considerarem melhor (comunhão total, separação total, comunhão parcial etc.).

HERANÇA: se um dos dois cônjuges morrer, o outro (ou outra) é considerado herdeiro.

FILHOS: mesmos direitos relacionados ao casamento com presunção de paternidade.

JUSTIÇA: basta procurar o Cartório de Notas para oficializar a união civil estável

SEPARAÇÃO: Quando o amor acabar, o casal pode formalizar a separação também por escritura pública.

Fonte: Colégio Notarial do Brasil

Cronologia do casamento gay no Brasil

1995 – A então deputada federal Marta Suplicy (PT) apresenta o PL 1.151, que propõe a criação da Parceria Civil Registrada, assegurando os direitos dos homossexuais. O projeto jamais foi aprovado na Câmara dos Deputados.

2000 – Instituto Nacional de Previdência Social estabelece benefícios previdenciários ao(à) companheiro(a) homossexual.

2008 – Superior Tribunal de Justiça (STJ) decide que situações relacionadas a uniões homoafetivas devem ser debatidas nas Varas de Família.

2011 – Medida que impossibilitava relacionamentos homossexuais públicos envolvendo militares deixa de ter efeito no Brasil.

2011 – Supremo Tribunal Federal reconhece, por unanimidade, união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. Assim, homossexuais podem ter mesmos direitos previstos na lei 9.278/1996, a Lei de União Estável, que julga como entidade familiar “a convivência duradoura, pública e contínua”.

2011 – Primeiro casamento homoafetivo do Brasil (Dia Mundial do Orgulho LGBT) acontece em Jacareí (SP), entre Luiz André Moresi e Sergio Kauffmam Moresi.

2013 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determina que cartórios não podem rejeitar a celebração de casamentos homoafetivos. Congresso ainda não aprovou lei a respeito.

2017 – CCJ aprova no Senado projeto de lei que passa a reconhecer o casamento homoafetivo no código civil brasileiro.

2018 – Aumento da realização dos casamentos homoafetivos em 61,7% em comparação ao ano anterior, segundo o IBGE.

2020 – Projeto de lei aprovada pelo CCJ em 2017 segue em tramitação e sem previsão para ir a plenária.




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