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"Queremos constituir família e o Estado tem dever de garantir", diz advogada sobre casamento LGBT

Advogada e bancária de Vitória irão se casar em fevereiro de 2022 após dois anos de namoro e veem que ainda é preciso avançar na garantia de direitos para a comunidade LGBTQIA+

Marcelo Pereira

Redação Folha Vitória
Foto: Reprodução/Diego Corrêa
Fran Barcelos (no alto) e sua noiva Brunella Venturin se conheceram na fila do supermercado

A advogada Francelle Barcelos, 30 anos, a Fran, e a bancária Brunella Venturin, 34, jamais imaginariam que segurar um saco de gelo, depois de uma prosaica ida a um supermercado para comprar cervejas numa noite de sábado, iria ser o pivô de um namoro. O encontro em Vitória evoluiu para uma grande cumplicidade e paixão e que vai ter como destino a celebração do casamento em fevereiro de 2022.

Quando se casarem, elas estarão completando dois anos como namoradas. O início da relação teve show do cantor Silva como trilha sonora. Um mês depois, quando o mundo virou de cabeça para baixo por causa da pandemia de coronavírus, as meninas terminaram por intensificar ainda mais os contatos. "Veio a covid-19 e a questão do isolamento social fazendo muitos trabalharem de casa. Foi o caso da Brunella. Acabou que o contexto estimulou a um 'intensivão' no nosso relacionamento pois passamos a morar juntas. E a gente se deu super bem, fluiu mais ainda, somos muito parecidas e isso ajudou", comemora Fran.

As duas fazem parte do universo de casais homoafetivos que resolveram oficializar seu amor, num movimento crescente a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, há 10 anos, decidiu a favor da união estável de casais gays. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que ampliou a decisão para todo o país e exigiu que os cartórios realizassem os casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

O Folha Vitória fez um levantamento junto à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), até novembro deste ano. Nele, ficou comprovado que o país vai viver um boom dessas uniões. Os casamentos homoafetivos no Brasil chegaram a 9623 cerimônias contra 8536 no ano passado. Já as uniões estáveis até novembro deste ano foram de 2149. No ano anterior, foram de 2182.

O Espírito Santo também segue essa tendência crescente observada no país. Até novembro deste ano, foram 287 casamentos e 56 uniões estáveis. No ano passado, foram 253 casamentos e 47 uniões estáveis. Ou seja, a marca de 2020, tanto à nível de Brasil como de Espírito Santo, já foi superada.

Foto: Reprodução/Diego Corrêa
Elas irão se casar em fevereiro de 2022

A reportagem foi atrás de histórias de casais para que eles contassem suas histórias e o que levou a decidirem sobre o registro na Justiça. 

Fran e Brunella contam com o apoio das famílias e dos amigos. Brunella lembra que já havia namorado garotos antes. Achou que seria um baque para os parentes ao assumir seu relacionamento com outra mulher. "Nada! Só recebi amor, carinho, compreensão e ansiedade para conhecerem a Fran. Acho que, além da evolução da sociedade em entender que todo amor é amor, era evidente para eles como eu estava feliz, leve", destaca.

Fran coloca sua história de amor com Brunella como consequência da luta pelos direitos LGBTs feita por inúmeras gerações anteriores de pessoas, que, muitas vezes, não puderam ter esse espaço livre de afeto como acontece hoje. "Em relação ao direito que tenho hoje, de casar com a mulher da minha vida, eu, sendo outra mulher, só posso dizer que reconheço a luta. E digo luta porque, de fato, foi pela luta e bravura de muitos que estamos onde estamos hoje", aponta. Ela diz que o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou por fazer o papel que seria do Poder Legislativo, mas que isso foi justificado diante da urgência dos novos tempos. "Seria impossível manter-nos às margens de direitos tão básicos a nossa dignidade, como é o caso do casamento. Somos cidadãs que amam e desejam constituir família, e o Estado tem o dever de garantir isso", reforça.

Brunella faz planos de vida com a futura esposa mas não perde de vista que é preciso mais avanços para a comunidade LGBTQIA+. A luta por direitos deve pensar no coletivo. "Infelizmente, estar em um ambiente que tratam tudo com naturalidade ainda não é a regra, e sei que tenho muita sorte", avalia. 

Leia os relatos dessa trajetória do namoro até a decisão pelo casamento:

Francelle Barcelos, 30 anos, advogada

Eu conheci minha Bubu em um sábado à noite, dia 30 de novembro de 2019, dentro de um pequeno supermercado do bairro. Eu havia passado o dia todo fazendo trabalho voluntário e estava bem cansada. Então resolvi tomar uma cerveja na casa de umas amigas, e fui ao mercado comprar. Já lá, no corredor das cervejas, eu a vi, tão linda! Calça jeans rasgada e blusa preta, cabelos castanhos longos queimados de sol. Ela olhou para mim e sorriu. Sorri de volta


Após pagar a compra, a encontrei na frente da saída. Ela estava segurando um saco de gelo, saco este que me pediu para segurar por uns minutos e que rendeu uma pequena e rápida conversa. kkk (a apelidei de menina do gelo, para as amigas).

Naquele dia algo aconteceu dentro de mim, eu só sabia falar dela.

No dia seguinte, Papai do Céu me deu um presente, a encontrei de novo! Dessa vez em um samba que gosto muito! Começamos a namorar dia 7 de fevereiro de 2020, ao som da música "Deusa do Amor", no show do querido Silva! Logo veio a pandemia da Covid-19, e um turbilhão de mudanças na rotina. Meu amor é asmática, e precisou trabalhar remotamente. Acabamos morando juntas muito rápido! Foi incrível como tudo foi orgânico, fluiu leve. Somos muito parecidas, e isso ajudou! Alegria para gente é dia de praia, sol e samba. Compatibilidade maior impossível.


Fico feliz em dizer que nosso amor foi acolhido pelas nossas famílias! Tenho uma relação ótima com a minha sogra e toda sua família, e com meu sogro e minha segunda sogra – sua esposa, e família! E o contrário também é verdadeiro. Minha mãe é louca em Brunella! Todos os meus irmãos e amigos são, impossível não se apaixonar por aquela baixinha!

Esse ano de 2021 está sendo maravilhoso para nós! Ela me pediu em casamento dia 07 de março de 2021, e o casamento no civil está programado para 07 de fevereiro de 2022, com a festa no dia 12! Aproveitamos este de ano de 2021 para arrumar a casa (fizemos tudo juntas, de pintar as paredes a tentar criar luminárias, kkk).

Outro plano que já deixamos engatilhado foi a maternidade. Queremos muito a maternidade em nossas vidas, e ambas queremos gestar! Então, com todo suporte de nossa médica, doutora Isabela Rangel, realizamos a fertilização in vitro (FIV). Está tudo lá guardadinho, para daqui a três anos nos tornarmos mamães!


Em relação ao direito que tenho hoje, de casar com a mulher da minha vida, eu, sendo outra mulher, só posso dizer que reconheço a luta. E digo luta porque, de fato, foi pela luta e bravura de muitos que estamos onde estamos hoje. Reconheço também que o STF assumiu uma carga que deveria ter partido do Poder Legislativo. Mas, seria impossível manter-nos às margens de direitos tão básicos a nossa dignidade, como é o caso do casamento. Somos cidadãs que amam e desejam constituir família, e o Estado tem o dever de garantir isso.

Eu sou uma pessoa muito resolvida, e com a sexualidade não seria diferente. Me entendi muito nova, e contei aos meus pais, irmãos e amigos. Foi um simples “Sou mulher e gosto de mulheres”. Minha família e meu núcleo de convívio sempre me acolheu, mas sei que essa é uma realidade isolada. Infelizmente muita gente não tem a mesma sorte que eu. Ter espaço e se sentir bem para falar da própria sexualidade é um grande privilégio, mas não deveria ser. Ninguém se sente privilegiado por poder dizer que é heteroafetivo, entende?

Brunella Venturin Villas, 34 anos, bancária

Conheci a Fran do jeito mais despretensioso possível: no supermercado. Dia 30 de novembro de 2019, sábado à noite, comprando gelo para encontrar amigas minhas, ela comprando cerveja para encontrar amigas dela. O primeiro esbarrão foi aquele clichê de filme adolescente, as duas tentando passar pelo corredor, uma em cada direção e indo ambas para o mesmo lado, rindo sem graça, e nenhuma conseguindo passar. Até que ela, sempre gentil, me deu passagem. Ali alguma coisa já tremeu aqui dentro. E eu, que sempre gostei de, mas sempre critiquei, romances instantâneos da ficção, me vi enfiada em um (com ressalva de que, em vez de um cenário de corredor de escola, era um freezer de cerveja).
Reprodução/Diego Corrêa
Reprodução/Arquivo Pessoal
Reprodução/Arquivo Pessoal
Os olhares ao longo do término das compras continuaram e, já na porta, ambas esperando um carro de aplicativo para seguirmos cada uma sua programação, trocamos pouquíssimas palavras. Eu a pedi para vigiar meu saco de gelo enquanto ia ao lado de fora, e ela reclamou da demora do carro. Nesse momento os dois carros chegaram e eu achei que nunca mais a veria. Passei o resto da noite e o dia seguinte todo comentando dela para todos os meus amigos: “Gente, vocês precisam ver a menina que conheci no mercado...”


No dia seguinte, nessa cidade maravilhosamente pequena que é Vitória, a “menina do mercado” estava no mesmo samba que eu. Fiquei desorientada, arrumei meu melhor sorriso, e ela: “De onde eu te conheço mesmo?”. Desmontei. Mas ela emendou um “Mentira, eu estaria segurando seu gelo até agora”. Dali, foi uma sucessão de encontros ao acaso, com um aplicativo de relacionamentos ajudando a timidez no meio do percurso, e agora estamos aqui, completamente idiotas uma pela outra, aliança na mão direita e ansiosíssimas pelo casamento em fevereiro!


Nesse caminho todo, tivemos a sorte de termos famílias maravilhosas ao nosso lado. Falando especificamente da minha, tive um pouco de receio, no início, de contar para eles. Eu já tinha 32 anos, até então só havia tido namoros heteronormativos. Achei que seria um baque para eles. Nada! Só recebi amor, carinho, compreensão e ansiedade para conhecerem a Fran. Acho que, além da evolução da sociedade em entender que todo amor é amor, era evidente para eles como eu estava feliz, leve.

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Depois de contar para a família, eu só queria gritar para todo mundo o quanto eu estava apaixonada e que amor da vida existe sim! Então nunca nos escondemos. Na rua estamos sempre grudadas, de mãos dadas, fazendo carinho. No trabalho, todos sabem que me casarei com uma mulher e nunca fizeram qualquer comentário diferente do que fariam caso fosse um homem. Infelizmente, estar em um ambiente que tratam tudo com naturalidade ainda não é a regra, e sei que tenho muita sorte.


Casar nunca foi um sonho para mim, até que a Fran surgiu. Ela, o amor e as novas perspectivas que a pandemia trouxe, fizeram uma revolução em mim e casar e ter filhos passaram a ser o plano mais óbvio, mais certo, mais lindo. Em fevereiro de 2022 a primeira parte do sonho começa, com um casamento com nossa carinha, cheias de ansiedade para juntar nossas famílias e amigos mais queridos para celebrar o amor. O nosso amor! Permitido, legalizado e reconhecido.

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