Após vídeo sobre “homem trans engravidar” viralizar, vereadora é atacada na internet

“Mula dos infernos”, “psicopata”, “doente”, “louca”, “comedora de fezes”, “vergonha”, “petralha”, “burra”, “palhaça”, “imbecil”, “vagabunda”, “demente” “imundície”. Esses e outros xingamentos com palavrões impublicáveis tiveram como alvo a vereadora de Vitória Karla Coser depois que um trecho do vídeo da sessão da Câmara de Vitória da última terça-feira (09) viralizou.

Karla foi alvo de ataques em suas redes sociais

Na sessão, em meio à discussão do projeto “Eu escolhi esperar”, a vereadora disse que estranhou o projeto não ter passado pela Comissão das Mulheres. “Afinal, a maior parte das pessoas que engravidam são mulheres, homens trans também engravidam. É importante deixar registrado”.

Nesse momento, Karla foi interrompida por três vereadores. Armandinho Fontoura pediu para tirar a fala das atas taquigráficas porque seria “fake news”. O presidente da Câmara, Davi Esmael, perguntou se era sério o que ela estava falando e depois disse ser uma aberração. O mesmo termo (aberração) foi repetido pelo vereador Gilvan da Federal. A vereadora Camila Valadão disse, após as interrupções, que dizer que homem trans é aberração é transfobia.

Viralizou

Montagem postada por Davi Esmael no Instagram

No mesmo dia (09), Davi Esmael fez uma montagem com o trecho da sessão em que Karla fala sobre a gravidez de homens trans e postou em suas redes sociais. A montagem contou com um meme de um menino que dá gargalhada com a legenda: “Como você pode ver no vídeo que encaminho aqui fiquei até surpreso com a fala. Foi um susto. Mas diante de tantas situações estranhas que as duas vereadoras têm defendido nada mais nos surpreende”.

Até a noite de ontem (12) a postagem tinha 833 curtidas e 273 comentários – a maioria de apoio a Davi. Mas teve também quem questionasse a postura do vereador, chamada de desrespeitosa e debochada, principalmente por ele ser o presidente da Câmara.

No outro, dia, Gilvan fez a mesma coisa, também postou trecho do vídeo com a fala e uma montagem. O vídeo também foi postado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (até ontem tinha mais de 407 mil visualizações), pela deputada federal Bia Kicis e pelo jogador de vôlei Maurício Souza, todos com tom de ironia contra a vereadora. “Virou piada nacional”, disse Davi Esmael.

E, com a viralização, também começaram os ataques, tanto nos comentários dos que postaram o vídeo-montagem como nas redes sociais da vereadora. Alguns chegaram a enviar mensagem privada com xingamentos para o perfil de Karla.

Postagem de Eduardo Bolsonaro no Instagram

“Estamos monitorando os posts. São ataques de ódio, com mensagens raivosas, misoginia clara nas falas, numa tentativa de me ridicularizar, mostrando também uma falta de conhecimento e de reconhecimento da população trans. O que eu tenho tentado fazer é explicar que homens trans são homens que nasceram com útero”, disse Karla.

Chama a atenção que os comentários mais agressivos são de perfis fechados, com pouca ou nenhuma publicação, mas com milhares de seguidores – o que sugere que podem ser robôs agindo numa ação orquestrada.

Karla disse que ainda está avaliando com sua assessoria jurídica se vai denunciar ou processar os autores dos ataques. Com relação à postagem dos vereadores, ela disse não ter achado de “bom tom”. “Gente que não tem proposta, que não tem o que construir, que não tem ideia, que tenta crescer ridicularizando os outros, mas isso não é nada além do esperado. Tentam crescer usando minha imagem. Pode reparar, eles têm pouco mais de 100 curtidas naquilo que postam, mas quando postam minha imagem ou da Camila, eles têm muito mais engajamento”.

“Somos representantes do povo e o povo é diverso”

Maioria dos autores dos comentários tinha o mesmo perfil de “robôs”

A coordenação feminina da Associação de Câmaras e Vereadores do Estado (Ascamves) repudiou os ataques contra a vereadora Karla Coser. “É comum vermos a fala de mulheres sendo ridicularizadas e criticadas em espaços de poder, e como coordenadora estadual da Ascamves Mulher repudio todo e qualquer ato machista. Discordâncias políticas, de opinião, de religião, etc, sempre vão existir, mas o que deve prevalecer é o respeito, o diálogo”, disse, em nota a vereadora Patrícia Crizanto, que coordena o Ascamves Mulher.

Ela também criticou a postura do presidente da Câmara, Davi Esmael. “Como presidente ele deveria ter sido o mediador, não o impulsionador do conflito. Estamos aqui como representante do povo e o povo é diverso. Mesmo se ele ou qualquer legislador não concordar com determinados pontos, não se deve haver desrespeito em momento algum”, concluiu.

E, afinal, homem trans engravida?

Uma pessoa é considerada transgênero ou trans quando não identifica seu gênero com o sexo biológico com o qual nasceu. Uma mulher trans é uma pessoa que nasceu com o aparelho reprodutor masculino, mas se identifica como mulher. Um homem trans é uma pessoa que nasceu com o aparelho reprodutor feminino, mas se identifica como homem.

A coluna consultou a médica Isabela Rangel, que é ginecologista e especialista em Reprodução Assistida, e questionou se um homem trans pode engravidar. Ela disse que sim, mas há condições. “O homem trans pode engravidar desde que não tenha sido submetido a intervenções cirúrgicas do aparelho reprodutivo feminino, como retirada do útero ou dos ovários, e também não esteja sob bloqueio hormonal feminino e/ou esteja realizando reposição de hormônios masculinos”, afirmou.

Mensagens privadas também foram enviadas

A questão é polêmica e coloca em lados opostos os que acreditam que o gênero é determinado pelo sexo biológico e os que acreditam que o gênero é determinado por uma identificação e construção social. Mas a polêmica criada na Câmara de Vitória pouco tem a ver com aspectos biológicos, sociais ou científicos.

Equipe jurídica da vereadora está avaliando se irá denunciar autores de ataques

Debater se a expressão correta é que “só mulheres podem engravidar” ou que “mulheres e homens trans podem engravidar” poderia ter gerado um espaço de aprendizagem, de ambos os lados, com a possibilidade de se ouvir especialistas com visões múltiplas sobre o tema.

Mas, como tem ocorrido desde o início dessa legislatura na Câmara de Vitória, muitos dos debates têm sido contaminados por discussões ideológicas intermináveis, por vezes desrespeitosas, em que é preciso lembrar os pares que se faz necessário respeitar o coleguinha e o cidadão pagador de impostos, que não vê com bons olhos uma casa de leis se transformar num ringue.