Arte como modo de fazer…tecendo poéticas relacionais

Foto de Carlos Queiroz
Carlos Queiroz

No campo da arte, há uma discussão já bastante consistente, que nos propõe pensar os museus como espaços educativos. “O museu é uma escola”, título do livro “El museo es una escola”, advoga em prol da ideia de uma arte pensante, a qual participa intensivamente dessa perspectiva que mistura os papéis desses lugares institucionais supostamente tão distintos e tão distantes.

Encontrei a menção a este livro, na introdução de um outro, intitulado “A arte é uma forma de fazer (não uma coisa que se faz), do original “El arte es una forma de hacer (no una cosa que se hace)”, escritos por Andrea De Pascual y David Lanau.

Este foi um livro que encontrei na livraria “La Central”, que fica no Museu Reina Sofía, em Madrid. Poderia dizer, sem dúvida, que fui mesmo encontrado por ele. Essa situação ocorreu em outubro de 2019, quando participei do workshop “Dance & Shoot”, ministrado pelo artista Alex Pachón, na ocasião do Fiver: International Screendance Movement, um evento que fazia parte das atividades da BAC Madrid – Bienal de las Artes del Cuerpo, Imagen y Movimiento de Madrid. Eu estava ali tentando dar cabo de algumas das inquietações que me acompanhavam, considerando meu ofício de professor de Geografia, que decidiu fazer do campo da arte seu principal interlocutor.

Produzir conhecimento nesse lugar fronteiriço, que muitas vezes é legendado, por aqueles que se posicionam como os que estão na certeza de um lado ou de outro, como não sendo, nem um, nem outro, foi algo que sempre me gerou muitas inseguranças.

Nesse texto, compartilho com vocês um pouco dos afetos que trouxe de volta na mala. Eles dizem dos ecos de uma obra produzida como “fruto del entrelazamiente de cuatro voces”. Acrescento, aqui, outra, na expectativa de fazer reverberar em vocês, o afago e um acolhimento que recebi ao “ouvi-las”. Uma obra que se inicia dizendo: “no son dos, somos cuatro”. Digo, então: somos cinco, somos seis, somos…

O livro trata da reflexão que os autores fazem sobre o que sucede com o encontro da arte com a educação. Somos convidados a pensar junto com eles sobre como os dispositivos pedagógicos e os dispositivos artísticos lidam de forma semelhante, com os processos de aprendizagem e criação. Professor e artista, dizem, não se sustentam mais como duas grandes categorias paralelas, especialmente quando esses campos de atuação – significadores de mundos – tomam para a si o conhecimento e a vida como suas matérias-primas. Com esses termos, interessa mesmo é o que está no entre deles, o que os torna comum.

Diante de certos dogmatismos e de suas correlatas regulações, parece-me, então, que há aqui uma escolha feita pelos autores mencionados, que trata de buscar reconfigurar o que sempre foi assim, para tornar possível outros possíveis. Sigo no rastro deixado por eles e estendo o convite aos que também sentem que podemos partilhar desse processo de fazer aproximar modos dizer | pensar | agir | sentir: termos por vezes que funcionam como muros.

Talvez possamos, assim, pensar a formação de um híbrido, algo que possa ser feito de palavras-pontes: aprender-pensar-criar. Fazer arte como quem constrói – essas – pontes. Pontes de significados e de sensibilidades. Quais pontes estamos tentando construir? Que posições consolidadas nós estamos dispostos a propor outras configurações? Nossos entendimentos de mundo, explicações sobre o mundo e ações para o mundo, passam por aí.

A educação, quando não se submete ao papel de ser legenda explicativa – educação como facilitadora – e, do mesmo modo, a prática artística quando não se reduz papel de ser adereço elitista, temos aí uma efetiva possibilidade para os processos abertos, inventivos e mais atravessados pelo princípio da experimentação transformadora. É o dizem De Pascual e Lanau sobre o nosso presente artístico.

O que temos, ressaltam, é um inacabamento como condição e um “work in progress” com artifício de um provisoriamente que atua qualificador da obra. Inacabamento e processo como abertura de possíveis. Um horizonte que nunca alcançamos, mesmo quando dizemos: já está!

A questão, portanto, não seria apenas de reconhecer o encontro entre esses dois campos institucionais, mas, intencionalmente, de fazer encontrar um e outro. Por isso, interessa para  De Pascual e David Lanau, colocar em pauta uma importante conversa sobre o que fazemos nos museus, (centros de arte, fundações e instituições culturais) e nas escolas.

Conversa essa que trata de questões conceituais e práticas sobre o que pauta esses dois lugares, reforçando a experiência necessária de iniciativas promotoras de ações concretas que coloquem exposição e aula no mesmo lugar de sentido e ação.

Esse é o caso do projeto híbrido de exposição e investigação, intitulado “Ni arte ni educación (Ni/Ni)”, organizado por Matadero Madrid, conjuntamente com o coletivo Pedagogias Invisíveis. Os autores dizem que Ni/Ni é “un ejercicio sobre cómo desmontar, agitar y producir conocimiento”, do mesmo modo que é um tornar possível para outros modos de agir, considerando a inevitável relação existente entre instituição, poder e conhecimento.

Um desses possíveis versa sobre questões de espacialidade e corporeidade como artefatos que afetam diretamente o ato criativo. Criativo, portanto, como algo da esfera do relacional, do comum, do coletivo. Talvez esteja aí uma questão importante entre o agir-contemplativo e o agir-ativo como híbridos que vão configurar novas espacialidades a esses espaços, que passaria a fazer da convivência coletiva e das interações com o espontâneo, sua matéria-prima.

Por isso, reverbera tanto em mim essa ideia de que “el arte es una forma de hacer”, especialmente quando entendemos o poder articulador que existe entre “o carácter performativo del pensamiento, su capacidad para imaginar y articular nuevos órdenes y configuraciones de lo personal e social” (p. 38). Talvez, assim, possamos falar, com menos estranheza, de um educar para o sensível e pelo sensível. Talvez, também, possamos falar de um agir desdomesticado, como algo que está bem aí, diante de nós.

Temos, afinal, as escolas e os museus como espaços para esse “pensar-hacer” transformador, mas não apenas. Temos a cidade, com suas ruas, suas esquinas, suas praças, muros, pontos de ônibus, fachadas. Espaços privilegiados para fazer ecoar as quatro vozes do “art thinking” (de María e Acaso e Clara Megías): pensamento divergente e sua prática criativa, o prazer pelo aprender, educação como produção cultural, bem como, os processos colaborativos. Para as autoras, essa é uma proposta que nasce com intuito de fazer aproximar processos educativos e práticas artísticas contemporâneas.

Para mim, é a cidade que nos oferece esse suporte para o agir emancipado. Cidade, que as vezes é palco, outras telas, folha em branco, rascunho, rabisco. Cidade como campo do agir, que nos dá a ver, modos de agir. Agir no espaço-tela da rua, na paisagem-câmera da calçada, no território-poesia dos muros.

Eis um horizonte que se enuncia como possível: arte, educação e cidade como campos discursivos, estéticos e políticos que se misturam. Horizonte possível: arte como obra de arte. Educação como obra de arte. Cidade como obra de arte.

Esse é um processo que podemos vislumbrar, o que implica, em nós e para nós, o desafio de tentarmos constituir outras relações com essas “obras”. Relações essas, menos atravessadas pelo paradigma da performance e da eficácia e, se ainda podemos sonhar, dizer em voz alta desse desejo partilhado com as autoras, de uma pedagogia-arte, que se constitui, de longe, como algo que não aceita ser apenas instrumento de facilitação e de simplificação do “entendimento”.

Há aí outras forças atuantes, que pretendem reforçar essa ponte e promover, de modo mais intensivo, esses encontros. Encontros que são, sobretudo, descomeços. Eis o tecer de poéticas relacionais feitas com o que somos: fragmentos inacabados.

Qualificativo que não apenas demonstra, mas também aponta para uma condição que me parece fazer bastante sentido: a obra de arte (como indício de uma forma de fazer), estando ela no museu, na escola ou na rua, nunca termina. Ela, ainda que provisoriamente, continua… no outro.

Foto de Carlos Queiroz

Carlos Queiroz

Professor do Departamento de Geografia-Ufes e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades-PÓSCOM/Ufes.