Como conviver consigo mesmo depois de um feito impossível?

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Juliano Gauche

Quando John Lennon foi atingido pelos três tiros fatais, disparados por um rapaz que depois passou a ser considerado como apenas um fã enlouquecido, nasceu ali, nesse mesmo instante trágico, um dos maiores símbolos do pacifismo no nosso planeta, o próprio John Lennon. O homem que caiu na calçada, vitimado pelo fanatismo, era um outro John Lennon, que em seus últimos anos de vida, estava sendo tratado com um lunático por uns, um palhaço por outros, e um terrorista pelo governo americano. E a cada entrevista que ele dava a mesma pergunta se repetia: e os Beatles?

John Lennon criou os Beatles quando ainda era um garoto, num país que ainda sofria pelos danos da segunda guerra, num cenário de pobreza e desesperança, no melhor estilo “sem saber que era impossível, foi lá e fez”. E esse feito impossível, Os Beatles, um grupo de músicos que ultrapassou todos os limites culturais e ganhou o mundo de uma forma nunca antes feita, tornou-se para muitos uma espécie de símbolo sagrado.

Depois do fim dos Beatles, Lennon não teve mais sossego, passou a sofrer ataques dos próprios fãs, e do mundo ao seu redor, por razões como, sua mulher ser feia demais, por sua vida ser caseira demais, por suas ideias serem controversas demais. E todo o mundo passou a se debruçar sobre a questão: o que aconteceu com aquele garoto fantástico? Quais as razões para que ele trocasse aquela vida onde garotas, festas, prêmios e tudo de mais prazeroso vinha ao alcance de suas mãos, por aquela vida tão estranha? Mas outra pergunta também poderia ter sido feita: como conviver consigo mesmo depois de um feito impossível?

Depois de romper os próprios limites, provar de algo que jamais se imaginaria provar, viver e conviver com o gozo da vitória, o que fazer? Ficar ali naquela sensação, flutuando, pelo resto da vida? Ficar repetindo a mesma fórmula, mesmo sabendo que ela já foi superada? Bob Dylan, ao final de sua clássica performance em 1966 cantando seu grande sucesso Like A Rolling Stone, no documentário No Direction Home, dirigido por Martin Scorsese em 2005, diz que se pudesse congelar o tempo naquele momento, congelaria. Depois segue dizendo que isso é impossível e que é preciso seguir em frente.

O próprio Dylan foi outro, que em 1967 fingiu que caiu de uma moto e aproveitou para se afastar de vez das agitações do show business, tornando-se um artista recluso e negando-se a se repetir. E ao receber o prêmio Nobel de Literatura em2017, depois de ser “vaiado” mais uma vez, por quem não o considerava à altura do prêmio, ele parece que não está sabendo, de novo, conviver com o tamanho do feito. É o que dá a entender seu novo livro lançado em 2022, The Philosophy of Moder Song. Ele que já tanto declarou que não sentia necessidade de escrever livros, porque suas canções o permitiam expressar tudo que ele tinha de literatura em si, fez um livro onde ele realça a importância das canções na filosofia moderna, quase que se justificando.

Esse desconforto que ronda os que se destacam, essa cobrança para que repitam o grande feito, ou para que façam a mesma coisa cada vez melhor, é um fantasma comum, não só na música. O filme SLY de 2023, dirigido por Thom Zimny com Sylvester Stallone, é justamente um Stallone no auge de sua sabedoria dizendo, foi impossível superar ou fazer outra coisa depois de Rock e Rambo. Nyad, também de 2023, dirigido por Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin, narra a história de uma nadadora que aos 60 anos ainda se vê na necessidade de arriscar sua vida, repetindo o mesmo processo de tentativa de nadar de Cuba até à Florida, para que tenha seu lugar de reconhecimento no Livro dos Recordes.

Manter o próprio mito parece um peso que pode mesmo destruir. Yoko Ono ao conhecer o Jonh Lennon, o alertou sobre o Elvis, descrevendo o rei do rock como alguém que ficou preso ao próprio trono, engordando e podendo morrer ali, como depois realmente aconteceu. Sem contar que no final dos anos sessenta, o número de artistas vítimas de excessos fatais só aumentava. O próprio Lennon nesse momento estava protagonizando momentos de abuso de LSD que o levavam a dissociações que o afastavam da realidade a ponto de ele acreditar que era mesmo um passarinho.   Ser um Beatle era uma glória, mas também uma maldição.

Segundo suas inúmeras biografias, Lennon soltou todo peso que carregava enquanto Beatle, num processo terapêutico que o mandava gritar feito um louco trancado dentro de uma caixa. Depois disso foi viver suas aventuras com sua esposa, Yoko Ono, participando desde protestos políticos, a programas de culinária na televisão, opinando sobre as pautas de sua época, como a guerra no Vietnã, a qual ela era contra e vivia repetindo que no lugar de guerra ele preferia a paz, ganhando assim, a alcunha de pacifista.

A maioria dessas aventuras, ou intervenções, que John e Yoko faziam, viravam piadas instantaneamente. E até hoje algumas delas circulam por aí, como aquela cena em que o John Lennon encontra o Chuck Berry num programa de TV, e quando os dois vão tocar juntos, a Yoko fica do lado gritando desesperadamente, para o desespero de qualquer tipo de purista. Mas nada disso parecia atingir Lennon & Cia, para quem só a própria liberdade parecia importar naquele momento.

Toda essa exposição, toda essa tentativa de se despir do mito Beatle, entregou o grande John Lennon de bandeja aos seus algozes. Ao tentar viver uma vida normal, levando ao pé da letra o que ele próprio disse em sua canção God, “eu já fui uma morsa (referência a um personagem seu dentro dos Beatles), mas agora eu sou só o John”, ele também ficou completamente desprotegido. “Não crie nada novo, ou te perseguirão pelo resto da sua vida”, sentencia o velho Dylan em algum lugar de suas várias cinebiografias.

Ao ler que Lennon gostava de fumar cigarros franceses, em sua última entrevista concedida à revista Rolling Stone, o jovem Mark Chapman deduziu que ele já não era mais aquele cara fantástico que era antes, e que algo precisaria ser feito, pelo bem da humanidade. O filme Capítulo 27, de 2007, dirigido por Jarrett Schaefer, explora bem esse conflito dentro da cabeça de Chapman. Munido de um revólver numa mão, e um exemplar do livro O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, na outra mão, Chapman aborda Lennon na porta do seu edifício, e o resto é história.

 

 

 

 

 

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Juliano Gauche

J.Gauche é autor e compositor. Publicou em 2002 seu primeiro livro de poemas. Entre 2003 e 2013, colaborou como letrista da banda índie Solana. Em 2013 começou seu trabalho solo, lançando até o momento quatro álbuns autorais. Desde 2002, segue publicando poemas, crônicas, contos e novelas em seus blogs, além de participar de coletâneas e colaborar no trabalho de outros autores e compositores.