Numa cidade que não é cidade

Foto de Carlos Queiroz
Carlos Queiroz

Quarta-feira,

Por volta de cinco e alguma coisa, da tarde

Quase seis

Saio de casa

De bicicleta

E observo aquilo que se repete, mas nunca fica diferente

A super fila dos carrões entulhados, como naquela cena do desenho do Pateta.

E a patetada, que não pode caminhar, faz urra

Tudo para buscar os filhos

Que também não podem andar

Numa escola que de nobre não tem nada

Tenho dificuldades de seguir caminho

Mas sigo

Na esquina do semáforo

Para atravessar uma grande avenida

Um sorriso

Vejo um pai levando sua filhinha na garupa da bicicleta. Ele está esperando o sinal fechar

E eu também

Eis que

O sinal fecha

E como todo sinal que fecha aqui em Vitória

Parece que causam uma hipnose nos motoristas

Uma espécie de atraso no entendimento

Um atraso de normalmente dois, três segundos de sinal vermelho sendo atravessados

Mas o que não contava o motorista do ônibus hipnotizado

Era que logo à frente

Não tinha mais espaço pra gente

Só carro

E eis a cena épica

Tudo parado.

Lembra do pai na bicicleta com a filhinha pequena?

Pois é. A gente sabe o quanto criança é espelho dos pais

As vezes o reflexo só vai aparecer muitos anos depois

Qual o reflexo que essa criança vai espelhar por ouvir o pai dizer em palavrões, algo equivalente a quantidade de carros ali parados

Tento seguir viagem no meio daquele tiroteio de adjetivos desqualificados

De um lado o pai que não é pai

Do outro o motorista que não é motorista

E eu sigo

Sem perceber

Pedalando numa cidade que não é cidade.

 

Carlos Queiroz

 

Foto de Carlos Queiroz

Carlos Queiroz

Professor do Departamento de Geografia-Ufes e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades-PÓSCOM/Ufes.