O que o fez pensar que podíamos interceder por ele junto aos céus?

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Fernando Augusto
Duchamp dizia que não ia a lugar algum a não ser como artista. Faxinar a casa, dirigir um carro, cozinhar podem ser arte? Penso isso ao regar as plantas de um terreno público. Minha intenção é criar um jardim no canteiro ao lado do meu atelier. Faço isso as vezes sozinho, as vezes com meus filhos. Sábado fizemos eu e Amanda.
Liguei  a mangueira na torneira, passei-a pela janela e liguei a água. Quando cheguei lá embaixo, senti o cheiro de terra molhada. Amanda estava fazendo chuvinha nas plantas. Julguei que ela estava gostando da tarefa. Os transeuntes nos olhavam com sorriso no rosto. Em qualquer lugar do mundo é sempre bonita a cena de alguém molhando um jardim, mais ainda um canteiro público onde é patente o abandono. Assim, ver alguém tomando essa responsabilidade é, certamente um gesto de generosidade. Mas o trabalho não terminava ali.
A rua de baixo estava com um monte de lixo, deixado pelo pessoal que tinha acabado de mudar. Olhei aquilo com desânimo, mas era algo que precisava ser feito. Pensei levar só algumas viagens daquele lixo até o container que estava na esquina em frente de um prédio em reforma. No meio da tarefa, Amanda desceu trazendo uma vassoura e uma pá.
– Que bom que você veio ajudar, tá muito lixo aqui. Vou tirar pelo menos uma parte, outro dia continuo, expliquei, carregando meio sem jeito umas peças de gesso. Ela se pôs a varrer o chão da rua (Duque de Caxias), enquanto eu carregava o que aguentava até o container.
A tarefa era pesada. Eu trabalhava e maldizia o pessoal que deixara aquilo para trás e o fato de eu ter permitido, pois eu estava presente no dia da mudança. O problema foi ter acreditado que os catadores de papel iriam pegar aqueles papéis, o que não aconteceu porque não havia somente papéis, mas também plásticos, peças de gesso, tecidos amassados em putrefação.  Na quarta viagem, o vigilante do prédio em reforma, em frente do qual estava o container, apareceu no primeiro andar e me chamou:
– Ei, ei senhor!
Pensei: ai, ai, ele vai pedir para eu não jogar lixo no container. Felizmente não era isso:
– O senhor não quer um carro de mão para carregar essas coisas?
– Claro, respondi contente, vai ajudar bastante!
Ele desceu, me passou o carrinho de mão, instalamos uma rampa de ferro para subir com o carrinho. Eu me apresentei.
– Meu nome é Fernando, trabalho naquele prédio ali. O pessoal mudou e deixou o lixo na rua.
Apertamos as mãos.
– Meu nome é Ismael, eu vejo o senhor cuidar das plantinhas ali. Ele falou.
Com carrinho o trabalho rendeu. Foram cerca de dez carradas e tiramos o lixo todo. Da rua eu observava o Ismael, escrevendo em um caderno, ou estava lendo? Fomos devolver o carro  de mão. Ele desceu e, na hora dos agradecimentos, disse:
– Eu queria pedir uma ajuda a vocês.
Eu me preparei para dar-lhe algum dinheiro  (merecidamente), pois a ajuda dele tinha sido fundamental. Mas ele queria outra coisa:
– Não é dinheiro, é espiritual. Estou passando por uma dificuldade grande. Não sei qual a religião vocês, mas queria pedir que me colocassem em suas orações.
Notei que ele tinha uma Bíblia debaixo do braço. Temi que ele começasse a pregar pra gente ali na rua. Mas não, ele simplesmente estava arrastado e cuidava pra não cair. Seus lábios começaram a tremer e ele continuou com voz embargada:
– Estou passando dificuldade em minha família. Eu sempre trabalhei, trabalho em dois empregos, procurando dar um conforto para minha mulher e meu pai, mas sempre trabalhando, trabalhando, chegando tarde em casa, cansado, as vezes estressado, acho que descontei isso neles. Não dei carinho para minha mulher e, agora, corro risco de separar. Estou pensando até em sair do outro emprego, ficar só com um para ter mais tempo pra minha família.
Ele olhava pra gente sem fixar os olhos em ponto algum, uns olhos esbugalhados, que mostravam as duas pupilas negras. Devia ter uns 30 anos, cabelo e barba feita como um soldado em seu uniforme de guarda.
– Você tem filhos? Perguntei.
– Não. Eu não casei com minha mulher, a gente vive juntos, mas não casei. Acho que errei, porque a mulher sempre sonha com um casamento na igreja, e eu não dei isso para ela. Agora vou sair de um emprego para dar mais atenção a minha família.
Conversamos mais um pouco e eu preparei para me despedir do Ismael.
A tarde caía. Passavam poucos carros na rua. No alto da ladeira continuava o som dos catadores de papel em sua festa de domingo. Senti o peso da cruz que Ismael trazia nos ombros. Nos despedimos. Ele ia subir aqueles andares vazios e ia entrar para a noite sozinho, naquele trabalho que não utilizava sua força física, não gastava sua energia, não cansava seu corpo, não quebrava aquela tensão que ele queria jogar para fora, que pesava sua cabeça e fazia seus olhos saltarem.
Talvez ele não dormisse, nem cochilasse aquela noite. Era o que seu serviço exigia, mas nem por isso ele estaria cumprindo bem sua tarefa. Ele não estava ali. Não estava para prestar atenção em nada ali. Ele não havia dito que queria deixar aquele serviço? No entanto, ele nos vira trabalhando lá embaixo, molhando o jardim, limpando a rua e ofereceu ajuda.
Voltei para casa com uma pergunta: O que em nós fez Ismael pensar que podíamos interceder por ele junto a Deus?
Foto de Fernando Augusto

Fernando Augusto

Artista plástico, pintor, desenhista e fotógrafo. Professor do Departamento de Artes da UFES. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP - Sorbonne).