Pode a inteligência artificial conceber arte?

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Lincoln G. Dias

O prêmio Jabuti de 2022 classificou entre os semifinalistas da categoria ilustração o Frankenstein, de Mary Shelley, com ilustrações de Vicente Pessôa. Consta no livro que as imagens são do referido designer e de Midjourney, um programa de inteligência artificial. Posteriormente, a instituição promotora do prêmio retirou a indicação, alegando que o uso de inteligência artificial não está regulamentado, que existem controvérsias sobre direitos autorais e que a possível premiação do livro a colocaria em situação de fragilidade jurídica.

O episódio trouxe à tona uma série de questões sobre as relações entre inteligência artificial e produção cultural. Entre elas está a justeza ou não da desclassificação, os direitos autorais sobre produções utilizadas por inteligência artificial e o impacto desta tecnologia nas relações de trabalho no âmbito da produção cultural.

Aproveito a polêmica para tratar de um ponto que me chamou particularmente a atenção: no calor da discussão, foi dito que estas novas tecnologias podem produzir arte de maneira inovadora e que são possíveis coautorias e trabalhos colaborativos com elas. O próprio Midjourney é tratado como coautor na ficha catalográfica do livro. É um engano: os programas de inteligência artificial são meios de produção, mas não são capazes de conceber arte. Tampouco podem ter o estatuto de parceiros ou coautores. O motivo é simples: eles não possuem subjetividade nem história de vida. Não são como o Hal 9000, da Odisseia no Espaço, capazes de fazer escolhas existenciais, ou como os replicantes de Blade Runner, capazes de se angustiar com a proximidade da morte. São somente ferramentas e como tais devem ser tratados.

Incapazes de autoconsciência, tais máquinas necessitam do comando de um sujeito exterior a lhes dar instruções. Estas podem ter diferentes motivações e altos níveis de complexidade. As escolhas decisivas são feitas por este sujeito, jamais pela máquina. É ele o autor e não ela. Caso esteja em jogo uma produção artística, é ele o artista e não ela.

Este sujeito é quem tem a condição e a necessidade de produzir arte. Estas lhe são dadas não por um enorme banco de dados e sim pelas faltas, imperfeições e vazios que são o estofo de sua própria experiência singular como ser humano. Somente este sujeito é capaz de interrogar o mundo e a vida, na medida em que busca uma verdade ou um sentido. Como o mundo e a vida não respondem, a arte é o único favor que ele próprio é obrigado a se conceder. É ela, talvez, a melhor resposta que se pode dar à graça e a tragédia de existir. É sempre um alento, mas nunca uma solução.

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Lincoln G. Dias

É artista visual, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor de Desenho e de Pintura do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo.