“Saltburn” ou posso resistir a tudo, menos às tentações

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Juliano Gauche

O cinema vem acuando as elites de uma forma brutal em seus lançamentos mais recentes. O polêmico filme “Saltburn” (2023), dirigido por Emerald Fennell, chega a ser esmagador, quando nos coloca de frente com os excessos de uma família rica americana, sendo oferecidos a um jovem de classe média que, diante de tanta oferta, experimenta um tipo de excitação que nós, bem lá no fundo, conhecemos muito bem.

“Saltburn” explora a relação entre um jovem rico, bonito, popular, mas frustrado com sua incapacidade de realizar qualquer coisa que o dinheiro e seus poderes não podem comprar, e que reconhece em um colega de classe, pobre, feio, rejeitado, capacidades brilhantes que ele então passa a querer por perto, abrindo seu mundo e seus privilégios para ele.

O quadro que se desenvolve a partir dessa relação, revela uma família afundada num torpor cheio desses vícios que o comodismo e o hábito de resolver tudo com dinheiro criam, os tornando vítimas fáceis para o convidado do filho. Os esforços para não saírem de suas zonas de conforto, além de ridículos, criam toda uma deficiência de elaborações, sejam elas emocionais, psicológicas, e até mesmo físicas. Em resumo, “Saltburn” desenha uma casa rica em objetos e recursos, mas miserável em relações, esforços próprios e conquistas.

Na brilhante série “A Queda da Casa de Usher” (2023), dirigida por Mike Flanagan e inspirada na obra literária de Edgar Allan Poe, o patriarca de uma família milionária, dono de uma indústria farmacêutica, se vê obrigado a presenciar a morte de todos os filhos, um por um, nos conduzindo a um acordo misterioso onde o preço de sua fortuna estava diretamente ligado à ruína de sua família.

“Triângulo da Tristeza” (2023) de Ruben Ostundle, e “O Menu” (2022) de Mark Milod, são dois outros filmes que também expõe a infantilização, e a total incapacidade dos ricos, diante de qualquer situação que exija o mínimo de experiência com a realidade.

Buscar o prazer e fugir da dor, assim define o comportamento humano o protagonista de “A Queda da Casa de Usher”, Roderick Usher, justificando seus lucros com opióides, mesmo diante de tantas mortes por abuso desses medicamentos. E essa busca desenfreada por alívio e prazer, facilitada pelo dinheiro sem trabalho, parece ser o principal alvo desses diretores.

Diante de um mundo prestes a entrar em colapso, onde notícias sobres guerras e catástrofes nos assombram a todo momento, parecemos estar diante de uma humanidade dividida entre trabalhadores cansados de tanta exploração, céticos quanto a um futuro melhor, e certos de que o melhor é aproveitar os prazeres da vida que estão ao seu alcance, e por outro lado esse modelo de rico infantilizado, incapaz de lidar com as emoções, tomar decisões, e afundados em excessos de toda sorte. E é no sexo e nas drogas que todos acabam se encontrando.

Como no conto “Onde Estivestes de Noite”, de Clarice Lispector, na zona do sexo e das drogas, todo mundo se transforma como se envoltos por um sonho intenso, onde pobres e ricos assumem posições contraditórias, onde muitas vezes os papéis se invertem, e os poderes simplesmente mudam de lugar. Fora da zona dos prazeres, de volta à realidade prática, cada qual retorna às suas posições, mas, ao contrário do conto da Clarice, o que foi visto já não pode mais ser desvisto.

Na série “Succession”, que teve seu último episódio exibido em maio de 2023, seu criador Jesse Armstrong, ao nos narrar a história de uma poderosa família dona de uma rede de comunicação, também nos entrega uma casa disfuncional, e eleva ao patético o comportamento de cada um de seus membros. Um pai violento, abusivo, egocêntrico, sem escrúpulos ao manipular seus próprios filhos para benefícios próprios. Filhos viciados em drogas, sexo, e desesperados por mais poder. Uma mãe esquecida, colocada de lado, assistindo a tudo numa mórbida passividade.

Todas essas obras, e outras tantas, expõem a fragilidade das classes “dominantes”, nos mostrando, cada uma em sua linguagem, como decisões importantes para nós, enquanto sociedade, podem estar sendo tomadas por pessoas infantilizadas e movidas por razões absurdas. E que no fim, quem vem decidindo os rumos do mundo é quem controla os caminhos que levam aos prazeres fáceis.

É o que mostra de forma didática a série documental “Vale o Escrito”, baseada no livro “Vale o que tá escrito”, de Dan, que conta a história do jogo do bicho no Rio de Janeiro, e sua relação com o carnaval e a milícia. Mostrando passo a passo como o dinheiro que jorra da contravenção sustenta a cidade há décadas, garantindo as maravilhas carnavalescas, o sustento de centenas de famílias, além de rios de sangue para que tudo continue como está, principalmente a política.

O que parece estar no ar, são questões como, quem não quer uma vida cheia de prazeres, longe de preocupações e com o mundo ao alcance das mãos? Quem consegue mesmo resistir às facilidades e se manter focado naquilo que é realmente necessário? De acordo com esse espelho gigante chamado cinema, ninguém. O que facilmente colocaria em nossas bocas a célebre frase de Oscar Wilde, “posso resistir a tudo, menos às tentações”.

 

 

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Juliano Gauche

J.Gauche é autor e compositor. Publicou em 2002 seu primeiro livro de poemas. Entre 2003 e 2013, colaborou como letrista da banda índie Solana. Em 2013 começou seu trabalho solo, lançando até o momento quatro álbuns autorais. Desde 2002, segue publicando poemas, crônicas, contos e novelas em seus blogs, além de participar de coletâneas e colaborar no trabalho de outros autores e compositores.