No coração do Sapê do Norte, entre as paisagens verdes de São Mateus e Conceição da Barra, um aroma familiar anuncia que o dia de trabalho começou. É manhã cedo, e as mulheres se reúnem no quintal para descascar mandioca.
Conversas se misturam a risadas, mãos habilidosas descascam com precisão cada raiz, e o som constante da faca contra a casca marca o ritmo de uma tradição que atravessa gerações.
Ali, o beiju não é apenas alimento. É identidade, é resistência, é a prova viva de que cultura se preserva quando há união e orgulho do que se faz.
Produzido de forma artesanal, como uma espécie de biscoito, a partir da goma e da massa da mandioca, o beiju é uma das principais fontes de renda dessas comunidades quilombolas e carrega um selo histórico: a Indicação Geográfica (IG) concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
O reconhecimento, publicado no dia 20 de agosto de 2024, é inédito no país. Pela primeira vez, uma IG com delimitação geográfica contempla comunidades quilombolas.
E o Espírito Santo entra para essa história com o beiju do Sapê do Norte, agora oficialmente reconhecido por suas qualidades únicas e pelo modo de produção que só existe ali. É também a 11ª e mais recente IG conquistada por um produto capixaba.
Raízes que resistem
Para a presidente da Associação Quilombola das Produtoras de Beiju do Sapê do Norte, Domingas Verônica Florentino dos Santos, a tradição é mais do que um ofício: é um elo com a história e a luta de seu povo.
“O beiju é uma tradição importante para nossas comunidades quilombolas, não apenas uma fonte de renda, mas também um símbolo de resistência cultural e preservação da nossa identidade. É uma atividade coletiva que envolve saberes e fazeres passados pelos nossos mais velhos e que mantém vivas nossas raízes”, afirma.
Domingas lembra que o momento de descascar a mandioca é quase um ritual. “As mulheres se reúnem, colocam o papo em dia, trocam histórias. Isso fortalece nossos laços e nossa cultura. Com a IG, mostramos que aqui não só vendemos beiju, vendemos também nossa resiliência e resistência territorial”, conta, com orgulho.
Do plantio à mesa
O ciclo do beiju começa na roça, com o olhar atento de Manoel Messias para o ponto certo de colher a mandioca. Ele cuida do plantio, acompanha o crescimento e decide a hora exata da colheita. Depois, leva as raízes para as mulheres descascarem e opera a máquina que mói a mandioca.
“É um trabalho que exige cuidado e paciência. A qualidade do beiju começa no campo”, resume Manoel.
Sabor de infância
Para Andreia Costa da Silva Carvalho, o beiju é sinônimo de lembrança afetiva. “Desde bem pequena, minha mãe me levava para a casa de farinha. Eu ficava na rede enquanto ela fazia o beiju. Com nove anos, já ajudava peneirando a goma. Aprendi observando, sem precisar que ela me ensinasse passo a passo”, conta.
O momento decisivo veio quando a mãe precisou se afastar para uma cirurgia. “Eu e minha irmã assumimos a produção. Não ficou perfeito, mas deu para manter. Desde então, nunca mais deixei de fazer”, diz.
Recentemente, Andreia criou sua própria marca: Beiju da Andreia – Sabor de Infância. “Esse nome é porque o beiju é parte da infância de todo mundo daqui. A IG veio para nos dar mais ânimo e nos levar mais longe. Antes, vendíamos nas feiras e para vizinhos. Agora, podemos pensar em outros mercados e até outros países”, fala.
Conquista da IG
O processo para conquistar a IG contou com o apoio do Sebrae/ES, que auxiliou a associação desde a apresentação do projeto até o reconhecimento.
“Fizemos todas as recomendações necessárias para dar entrada no processo, orientando a comunidade a se adequar aos requisitos. Também apoiamos na contratação de uma empresa de arte para criar o selo de origem controlada”, explica a analista da regional Norte do Sebrae/ES, Gianni Fagundes.
Com o apoio da Cooperativa dos Produtores Agropecuários da Bacia do Cricaré (COOPBAC), foi possível reformular a associação, criar procedimentos operacionais e definir estratégias para a emissão do primeiro lote com o selo da IG.
Patrimônio vivo
Hoje, cada beiju do Sapê do Norte carrega não só o sabor da mandioca bem trabalhada, mas também a história das mulheres e homens que mantêm viva essa tradição. Para a comunidade, o selo de Indicação Geográfica não é apenas um reconhecimento comercial, mas um atestado de que ali existe um patrimônio cultural que merece ser preservado e valorizado.
Com o selo, a expectativa é expandir a produção, alcançar novos mercados e garantir que o beiju continue sendo, acima de tudo, um símbolo da identidade quilombola capixaba.
Sobre a websérie
IdentidadES é uma websérie de reportagens e vídeos produzidos pela Rede Vitória em parceria com o Sebrae/ES. A cada episódio, uma história inspiradora revela como produtos com Indicação Geográfica estão transformando vidas, territórios e economias no Espírito Santo.