No coração de Vitória, o bairro de Goiabeiras guarda um tesouro que resiste ao tempo e ao avanço da modernidade. Entre mãos habilidosas que moldam a argila, pés que pisam o barro e fogueiras que transformam o trabalho artesanal em resistência, nascem as panelas de barro que dão alma à moqueca capixaba e tantos outros pratos. Mais do que utensílios, elas são um patrimônio vivo, carregado de história, identidade e orgulho.
Reconhecidas com o selo de Indicação Geográfica (IG) pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) desde 2011, as Panelas de Barro de Goiabeiras garantem autenticidade e protegem um saber ancestral que atravessa gerações, sendo hoje um dos maiores símbolos da cultura e da gastronomia do Espírito Santo.
Orgulho de um ofício que atravessa gerações

Para a presidente da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, Berenícia Corrêa, cada panela é um elo entre passado e futuro. “A panela de barro é o orgulho capixaba. É uma tradição que a gente vem trazendo dos nossos bisavós. Eu já estou na quarta geração. Quero, até o final da minha vida, carregar isso comigo”, diz, enquanto observa o movimento no galpão onde dezenas de artesãos trabalham.
A rotina começa ainda antes da modelagem, na busca pela argila do Vale do Mulembá. O barro, trazido por caminhões, é pisado, cortado e molhado até ganhar a liga perfeita.
“Muitas vezes encontramos pedra, raiz e até pedacinho de vidro. Mas a gente sente na hora e tira, porque o barro tem que estar limpo. É um processo de cuidado, paciência e experiência”, explica Berenícia.
No galpão, o trabalho segue de domingo a domingo. Cada artesão molda manualmente as panelas, dá acabamento e deixa secar por alguns dias. Depois, com uma pedra de rio, alisa cuidadosamente cada peça até deixá-la pronta para a queima. O resultado é uma panela resistente e única, que leva em si a força de gerações.
“Não existe moqueca capixaba sem panela de barro. Moqueca é capixaba, o resto é peixada”, brinca Berenícia, arrancando risos das colegas. Mas, por trás do tom descontraído, há a certeza de que preservar esse ofício é preservar também a identidade cultural do Espírito Santo.
Vida moldada pelo barro

Entre as paneleiras, Lucineia Jesus da Silva é um exemplo de reinvenção. Baiana de nascimento, chegou a Goiabeiras por amor e acabou encontrando também sua vocação.
“Eu não vim de família de paneleiras. Casei, vim para cá e aprendi com a família do meu ex-marido. Depois que ele e minha sogra faleceram, continuei sozinha. Criei cinco filhos com o trabalho da panela”, conta.
Há 30 anos, Lucineia é responsável pela etapa final, a queima, considerada uma das mais delicadas. “Não tem tempo certo. A gente descobre pelo olhar. Quando a panela chega naquele tom avermelhado, sabemos que está pronta. Depois, pintamos com a casca do mangue, que dá a cor escura e tradicional”, revela. Para ela, cada peça tem sua própria alma. “A panela é como um filho. A gente acompanha desde o barro bruto até virar um utensílio que vai para a mesa do capixaba”, fala.
O cuidado que vem do chão
Antes de chegar às mãos de Lucineia, o barro precisa ser preparado. Abelardo Neto Silva é quem garante que a matéria-prima esteja no ponto. “É como preparar uma receita. Tem que ter carinho. O barro vem duro, com raiz, pedra. A gente pisa, corta, molha, cobre com lona. Se não cuidar, a panela racha”, explica.
Já Ronaldo Corrêa, tirador de barro do Vale do Mulembá, vive com entusiasmo o trabalho que muitos não enxergam. “Eu sou apaixonado por esse local. Gosto de vir para cá, fico sozinho, boto meu radinho e vou cantando enquanto tiro o barro. É daqui que nasce a nossa panela. Se não tiver esse cuidado, não tem tradição”, diz.

Identidade reconhecida
Com o registro de Indicação Geográfica em 2011, as panelas de Goiabeiras ganharam proteção contra falsificações e a valorização que merecem. Apenas as produzidas ali, com as técnicas e materiais tradicionais, podem ostentar o selo.
“Foi o Sebrae/ES que trouxe esse reconhecimento para a gente. Foi a primeira vez que um artesanato recebeu a IG. Hoje, quem compra sabe que está levando a verdadeira panela capixaba”, ressalta Berenícia.
O reconhecimento também ampliou a visibilidade das paneleiras, atraindo turistas, fortalecendo a economia local e garantindo que a tradição permaneça viva. As peças são vendidas para todo o Brasil e têm grande procura entre restaurantes que valorizam a autenticidade da moqueca capixaba.
Para o diretor-superintendente do Sebrae/ES, Pedro Rigo, a importância da IG vai além da preservação da tradição.
“A forma com que essa panela é produzida só existe aqui, no Espírito Santo, nas paneleiras de Goiabeiras, com barro apropriado de muitos anos. Há uma transformação muito grande desses produtos quando vão para o mercado: ganham valor, notoriedade e identidade. Isso repercute não só para os produtores, mas para todo o estado, que passa a ser reconhecido nacionalmente pela riqueza de suas Indicações Geográficas”, afirma.

Muito além de um utensílio
Mais do que um utensílio para cozinhar, cada panela conta a história de uma comunidade que, com mãos firmes e pés no barro, insiste em preservar sua identidade. “A panela é nossa vida. É trabalho, sustento, cultura. Não existe Espírito Santo sem panela de barro”, resume Lucineia.
Tradição com identidade
As histórias de Berenícia, Lucineia, Abelardo, Ronaldo e tantas outras mãos que mantêm viva a tradição das panelas de Goiabeiras estão no novo episódio da websérie especial IdentidadES, uma produção da Rede Vitória em parceria com o Sebrae/ES. A série mostra como produtos com Indicação Geográfica transformam vidas, territórios e economias no Espírito Santo.
Sobre a websérie
IdentidadES é uma websérie de reportagens e vídeos produzidos pela Rede Vitória em parceria com o Sebrae/ES. A cada episódio, uma história inspiradora revela como produtos com Indicação Geográfica estão transformando vidas, territórios e economias no Espírito Santo.