A diferença que nos devolve a nós mesmos: lições de empatia no Setembro Verde

Setembro Verde marca um período de reflexão e mobilização em favor da inclusão das pessoas com deficiência. Mais do que uma campanha, trata-se de um convite para repensarmos nossas atitudes cotidianas e a forma como enxergamos a alteridade. Foi nesse contexto que me lembrei de uma pequena história, aparentemente simples, mas que me trouxe uma boa oportunidade de reflexão.

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Estive em restaurante especializado em mariscos, acompanhada de minha família. O espaço contava com um parquinho, onde as crianças se divertiam em meio à costumeira agitação infantil. Foi então que notei meu filho de cinco anos interromper os movimentos, tomado pela curiosidade diante de uma cena incomum para ele: uma criança pequena, sem um dos braços, divertia-se no parquinho ao lado da mãe.

Sem conseguir conter a curiosidade, ele perguntou à mãe:

— Por que ela é assim?

Senti-me sortuda por estar afastada o suficiente para não ter que pensar em uma resposta apressada. A cena pertencia àquela mãe, e coube a ela, com serenidade e naturalidade, responder:

— Ela nasceu assim.

Achei a resposta magnífica. Direta, clara e desprovida de qualquer tom de drama. Como se dissesse ao mundo: “é assim e está tudo bem”. Meu filho, satisfeito, voltou a brincar, sem maiores questionamentos e com a mesma tranquilidade com que havia chegado.

Esse pequeno episódio me deixou pensativa. Em que momento da vida perdemos essa pureza infantil — capaz de estranhar sem menosprezar — e passamos a olhar o outro com desconfiança, julgamento ou preconceito? Onde, ao longo da jornada, deixamos a curiosidade sincera ceder lugar a posturas capacitistas?

Hoje, é verdade, as pessoas estão mais cuidadosas com suas falas. Há uma vigilância sobre o discurso público, uma espécie de filtro para evitar o que não soa politicamente correto. Mas será que estamos igualmente atentos ao que se passa em nosso interior? Controlar a fala não basta: é preciso examinar o coração.

Julgar pode ser quase inevitável. O que podemos — e devemos — é perceber nossas inclinações antes que se transformem em palavras ou ações que ferem. Não é simples, e eu mesma já me vi em erro. Mas é nesse exercício constante que nasce a empatia. E a empatia, ao contrário do que muitos supõem, não é dom inato: é uma habilidade que se aprende, se cultiva, se renova.

As identidades que herdamos e as que nos surpreendem

Esse exercício de compreensão me remeteu imediatamente a Andrew Solomon. O autor ganhou notoriedade mundial com O demônio do meio-dia, uma análise profunda sobre a depressão. Anos depois, publicou sua obra monumental, Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade, com mais de mil páginas, resultado de uma década de pesquisa e centenas de entrevistas. 

Nesse livro, Solomon introduz os conceitos de identidade vertical e identidade horizontal, propondo uma reflexão poderosa sobre como as famílias lidam com a diferença — seja ela física, sensorial, intelectual ou ligada à orientação sexual.

As identidades verticais são aquelas herdadas dos pais, como etnia, língua, nacionalidade ou religião, quando não há ruptura cultural. Já as identidades horizontais aparecem quando uma característica da criança não encontra correspondência imediata nos pais. Entre os exemplos apontados pelo autor estão a homossexualidade, o autismo, a surdez, a deficiência intelectual ou física, a esquizofrenia e até mesmo a superdotação.

Ele explica que muitos leitores não ficaram satisfeitos com os comparativos entre diferentes condições — alguns argumentaram que não seria possível colocar lado a lado a homossexualidade e a esquizofrenia, a surdez e a superdotação. Ainda assim, Solomon sustenta que sua intenção não era nivelar experiências, mas mostrar como todas elas compartilham um mesmo eixo: a necessidade de reconciliação entre a diferença e o amor familiar.

Diagnosticado com dislexia na infância, Solomon contou com o apoio paciente de seus pais, sobretudo da mãe, que lhe ofereceu um ambiente estruturado e estratégias concretas para lidar com as dificuldades escolares. Cresceu em uma família de classe média culta em Nova York, com acesso a recursos educacionais e terapêuticos, mas também a um cotidiano permeado por cuidado e estímulo intelectual.

No entanto, quando sua homossexualidade veio à tona na adolescência, os mesmos pais — tão compreensivos diante da dislexia — reagiram com intolerância e vergonha. Esse contraste revela, de maneira pungente, a dor das identidades horizontais: aquilo que é estranho aos pais frequentemente é visto como falha, anomalia ou ameaça.

Ainda assim, Solomon enfatiza que o tempo pode operar uma transformação. Muitas famílias, após o choque inicial, aprendem não apenas a aceitar, mas até a celebrar os filhos que não se encaixam nas expectativas originais. O ditado “a maçã não cai longe da árvore” é posto em xeque: há maçãs que caem bem distantes. E, paradoxalmente, é justamente essa distância que pode estreitar laços e renovar afetos, porque a intimidade com a diferença reconcilia e transforma.

O autor observa ainda que filhos “excepcionais” — no sentido de profundamente diferentes — funcionam como amplificadores das tendências parentais. Pais já inclinados à negligência tornam-se ainda mais ausentes; pais atentos e afetuosos, por sua vez, são levados a exercer uma parentalidade extraordinária. A diferença, nesse caso, atua como catalisadora: potencializa tanto o pior quanto o melhor que existe na relação entre pais e filhos.

Ao longo de Longe da árvore, Solomon mostra que a diferença, longe de ser apenas um desafio, pode se tornar fonte de sentido, de comunidade e até de orgulho. Sua obra é, ao mesmo tempo, um compêndio de histórias sobre a diversidade humana e um ensaio sobre o amor em suas formas mais exigentes. 

Ao reunir famílias que enfrentam situações tão distintas, o autor revela uma verdade comum: compreender o outro, especialmente quando ele rompe nossas expectativas, é um exercício que redefine não apenas a parentalidade, mas a própria condição humana.

Quando a ficção retrata a realidade

Se Solomon se vale da investigação jornalística e do testemunho para explorar como famílias lidam com a diferença, a literatura cumpre papel semelhante ao transpor esse dilema para o terreno da ficção. É o que percebemos em O filho eterno, de Cristóvão Tezza. A narrativa acompanha Roberto, um pai que, após o parto, é surpreendido com a revelação de que seu primeiro filho tem Síndrome de Down. O impacto dessa descoberta é apresentado de forma contundente, como se observa no seguinte trecho:

“Recusa. Recusar: ele não olha para a cama, não olha para o filho, não olha para a mãe, não olha para os parentes, nem para os médicos — sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno em cada minuto subsequente de sua vida. Ninguém está preparado para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue transformar em filho.”

O romance retrata, com brutal honestidade, a dificuldade de aceitação inicial — um gesto de recusa que expõe tanto a vulnerabilidade paterna quanto os preconceitos enraizados na sociedade. No entanto, ao longo da narrativa, esse mesmo vínculo se transforma lentamente. Se no início predomina a rejeição, no desfecho é o futebol — elemento profundamente enraizado na cultura brasileira — que emerge como metáfora de aproximação. Durante uma Copa do Mundo, o esporte torna-se a linguagem comum capaz de reconciliar pai e filho: o que antes era silêncio e distância converte-se em proximidade e afeto.

A força de O filho eterno está justamente nessa capacidade de mostrar que o afeto não surge de imediato, mas pode ser construído no tempo, no convívio e nas mediações culturais que estruturam nossa vida cotidiana. Para quem tiver interesse, a narrativa também ganhou adaptação cinematográfica no filme homônimo, dirigido por Paulo Machline, com atuações marcantes de Marcos Veras, Débora Falabella e Pedro Vinícius.

O espelho da alteridade

Ao recordar o episódio singelo do restaurante e ao aproximá-lo das reflexões de Solomon e Tezza, percebo que o que nos transforma não é a ausência de diferenças, mas a forma como aprendemos a habitá-las. O Setembro Verde nos lembra que inclusão não é apenas uma pauta institucional ou uma palavra de ordem: é um exercício diário, feito de olhares, gestos e escolhas. Talvez seja essa a maior lição — compreender que o outro, em sua singularidade, não nos ameaça, mas nos devolve a nós mesmos, mais conscientes, mais humanos, mais inteiros.

Larissa O’Hara

Colunista

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).