
*Artigo escrito por Kárita Nunes, arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e Cidade e membro da Comissão de Patrimônio do CAU/ES.
A deterioração de espaços históricos pelo tempo e pela falta de manutenção levanta uma pergunta inevitável: por que ainda não valorizamos plenamente nossa própria história e cultura?
É possível que você conheça pelo menos uma pessoa que evita circular nos centros históricos e culturais, mas que faria questão de visitar lugares semelhantes, e preservados, se estivessem em outro país.
Em diversas partes do mundo, essas áreas são vistas como motores econômicos e culturais, mas, no Brasil, essa compreensão ainda é incipiente. Isso ocorre, em grande medida, devido ao analfabetismo patrimonial que atinge tanto a sociedade quanto a gestão pública.
Esse problema se manifesta nas decisões apressadas e mal embasadas que vêm alterando a paisagem cultural. Sob o pretexto de “revitalizar”, têm-se destruído heranças, identidades e paisagens afetivas.
O uso inadequado de termos técnicos como revitalização, retrofit, requalificação e restauro revela o despreparo de muitos gestores e a ausência de equipes completas e qualificadas nas administrações públicas.
É comum que decisões sobre o patrimônio sejam tomadas sem a participação da população e com a contratação insuficiente de arquitetos e urbanistas, o que compromete o uso responsável dos recursos públicos.
A baixa presença desses especialistas nos quadros municipais impacta diretamente na qualidade das intervenções e na conservação dos espaços históricos.
Uniformização dos lugares
Hoje, o resultado é evidente, principalmente nos espaços públicos mais antigos. Praças que precisavam apenas de manutenção, com adaptações pontuais às necessidades atuais sem perder sua essência histórica, têm se tornado padronizadas e sem identidade. Restam lembranças que já não podem ser tocadas, apenas contadas e vistas em fotografias.
Uma praça histórica não deve se parecer com uma praça contemporânea, pois cada época carrega sua própria linguagem e significado.
No entanto, o que se observa é a uniformização dos lugares. Gastam-se milhões em obras que apagam a alma dos lugares. Esse é o retrato do analfabetismo patrimonial, a condição que atinge a sociedade, que se esquece que preservar não é apagar o passado, mas manter viva a memória coletiva.
Educação patrimonial
Esse cenário escancara a urgência de discutir educação patrimonial, entendida como uma forma de alfabetização cultural. Trata-se de um instrumento essencial para que as pessoas entendam o contexto sociocultural e a trajetória histórica em que estão inseridas, fortalecendo uma autoestima baseada no conhecimento e no respeito às suas próprias raízes.
É por meio dela que se aprende a ler a cidade, reconhecer suas marcas e entender que cada praça, monumento ou modo de fazer carrega parte da nossa identidade coletiva.
A educação patrimonial é regulamentada por leis federais e estaduais, e há também exemplos de leis municipais inspiradores, como a Lei nº 823/2022 de Córrego Fundo (MG), que tornou obrigatória a educação patrimonial nas escolas municipais, uma medida que deveria ser ampliada a todo o país, mas ainda não é.
Educar para o patrimônio é investir no futuro. A educação patrimonial deve começar na infância, dentro e fora da escola, com professores preparados para despertar o olhar sensível sobre o lugar onde se vive.
Memória e pertencimento
Ao visitar e perceber espaços históricos, as crianças se tornam multiplicadoras de conhecimento, influenciando suas famílias e comunidades.
Esse processo fortalece o sentimento de pertencimento e transforma a população em agente ativa de preservação. Somente um povo que reconhece de onde veio pode se desenvolver plenamente.
Nossos patrimônios edificados, arqueológicos e imateriais, expressam a identidade coletiva e inspiram amor pela cidade. Preservar também é investir: cidades que cuidam de sua história atraem turismo, fortalecem economias locais e criam vínculos comunitários duradouros.
A alfabetização cultural forma cidadãos críticos e conscientes, capazes de transformar o lamento em ação e preservar o patrimônio cultural das nossas cidades.
