
Às vezes a morte chega como um trem que, esperado na estação, vai diminuindo de velocidade, diminuindo, até parar, no horário, um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, mas previsível, aguardado. Outras vezes, cai na nossa cabeça como um monolito de desenho animado em cima do coiote, surpreendente, inesperada, acachapante: esmagadora.
Foi assim que na manhã de quinta-feira passada este peso esmagador caiu sobre nossas cabeças: Marcos morreu. A notícia da morte de nosso amigo, o artista e professor, nosso colega na UFES, Marcos Martins: Marcos morreu. Perplexidade. Saudade já: a interrupção de um projeto – de vida, de vários projetos: ávido, Marcos era prenhe de futuros.
Então, na metade da vida, na meia-idade – não tinha cinquenta anos ainda, numa época em que almejamos, se não chegar, ao menos nos aproximar dos cem, a notícia: Marcos morreu
Uma vez, fomos juntos a um congresso em Pernambuco e, em seguida, esticamos a viagem e dividimos um quarto em Olinda. Ao chegar à recepção, nos informam que só há quartos com camas de casal. Vamo ter que dormir juntinho, macho? – como ele, cearense, diria – pensei e não falei.
Para minha surpresa, de sudestino, ele pergunta, com a maior naturalidade: o hotel teria uma rede? Tinha, naturalmente, e, da cama, numa perspectiva cujo olhar ficou registrado numa foto que tirei, vemos Marcos trabalhando no laptop, confortavelmente instalado na sua rede, onde dormiu, deixando a cama toda para mim. No dia seguinte partiu e eu, que podia ficar mais um dia, senti, naquela rede vazia, a ausência provocada por sua partida – agora definitiva – que também fotografei.

A rede vazia, Olinda, setembro de 2012.
Antes de ele ir, almoçamos e assistimos a um jogo do meu Fluminense, que contou com a torcida animada dele, tricolor também, torcedor do Fortaleza. Outra foto, outro registro: um momento feliz.

Marcos Martins e Ricardo Maurício, em Olinda, 2012.
Ainda em Olinda, na véspera de sua partida, senti vontade de fazer um trabalho da minha série Read me, ready me, em que ficava parado por uma hora em total imobilidade, no meu uniforme – àquela época cotidiano – calça e tênis pretos, camisa branca, careca, de cabeça rapada, em frente à catedral, que me fascinou com sua presença silenciosa, compacta, poderosa e opressiva na tarde fria da cidade. Solícito, Marcos se desdobrou: fotografou e filmou a in-ação.

“Readyme, readme” Olinda Catedral”, 2012, foto: Marcos Martins
Dois encontros marcantes aconteceram durante aquela hora: um com uma moça, Suely, muito animada e brincalhona com seu grupo de amigas; outro com um menino de não mais de dez anos, provavelmente um guia-mirim local, magrinho, animado, que ficou, como Suely, muito movido pela presença imóvel, estranha, daquele sujeito careca parado lá por tanto tempo.
No ritmo de uma metralhadora, o menino disparou sua lista de serviços, como fazia provavelmente com os turistas, e, pasmo com o meu silêncio – necessário obviamente, recuou boquiaberto e assustado. Mas o melhor estava por vir: meses depois, encontro na câmera de vídeo uma conversa entre Marcos e o menino – dois meninos. O pequeno dizia que “deve dar uma coisa na pessoa quando fica tanto tempo parada assim, não dá, não?” “Uma coisa, que coisa”, retruca Marcos, estimulando. “Sei lá, uma coisa. Porque ele tá chorando” (na verdade, eram lágrimas de crocodilo, ou melhor, de tartaruga marinha quando vem à praia, porque eu procurava não piscar e as lágrimas escorriam). “Ele está chorando”, pergunta Marcos, incitando, “é, está, vai lá ver”, responde o menino, e Marcos: “eu não, tenho medo”. Humor, picardia, doçura: Marcos estava todo ali.
Três anos depois, num belo trabalho – ou melhor, sublime – que recebi como uma homenagem à série, à qual de certa forma se incorporava, Marcos ficou parado, com sua frágil figura, em in-ação no paredão Malecón, em Havana, enquanto ondas enormes explodiam ameaçadoras na amurada.

Marcos Martins, still da videoperformance “Parede-Malecón, Havana, Cuba, 2016
Foram tantas colaborações, principalmente no âmbito do nosso Grupo 3P, Práticas e processos da performance, em que, num primeiro momento, como nos três mosqueteiros, éramos quatro: nós dois, Yiftah e Carlos, e concebemos e realizamos tantos projetos, em especial, Preposformance, que nos levou a Curitiba, e em duas exposições, a São Paulo.

Carlos Borges, Yiftah Peled, Marcos Martins, Ricardo Maurício na instalação “Preposformance”, Paço das Artes, São Paulo, 2014
N”a Firma”, outro trabalho em que me fotografava junto a amigas e amigos – e até desconhecidos – que estivessem trajando também calça, ou saia, preta e blusa branca, você, que foi meu vice na chefia do nosso Departamento de Artes Visuais, antes de assumi-la em seguida, à indagação sobre que “cargo” queria ocupar na Firma, ao saber que eu era o “contínuo”, foi rápido: “assistente de contínuo”! Inteligência, alegria, estava tudo ali. Em meio aos risos. Seus risos, que você fazia nossos.
E projetos futuros – uma exposição marcada para a Homero Massena, com Carlos! – que não contarão mais com sua suave, simpática e talentosa presença (a quantidade de amigas e amigos, colegas, ex-alunas e alunos que se manifestaram atordoados é sintomático de como você tocava as pessoas com seu carinho). Outra vez, pegando uma carona com uma aluna, minha orientanda à época, Marcos me contaria mais tarde que, após ouvir uma narrativa extensa e compulsiva de uma sequência de dores e sofrimentos existenciais, perguntou a ela: “você é feliz?” Nunca me esqueci. Você foi feliz, pergunto agora. Teve tempo? Era isso que buscava, tão avidamente? (Não será isso o principal?).
Uma vida ceifada. Precocemente. No sono. É incrível que, ano passado, num evento de performances em homenagem a outro Marcos, o Vinícius, outro que nos deixou ainda mais jovem, Marcos tenha ficado deitado ao som de ruídos silenciosos da floresta, em aparente meditação: harmonia e tranquilidade, a música da natureza.

Marcos Martins, performance, 2024, no Serão de performances Marcos Vinicius, setembro de 2024
Batatinha, você deixa uma lacuna esquisita na vida da gente, um buraco, um rombo. Um vazio. Deixando para trás todos os projetos, ansiedades e atribulações deste mundo dos vivos. Espero que você encontre o silêncio desta outra mata, neste outro lugar.
Descanse em paz nesta nova canoa, na sua rede.
Para nós, agora, uma rede vazia.
Página 1 de 1