“Os homens não limpam os banheiros”, foi algo dito no filme. Mas não é a constatação disso que me assusta, mas a inexistência de um “porquê”, quando perguntado. É assim, porque é assim.
Essa foi apenas uma das minhas “entradas” no filme Entre dois mundos. Um filme que poderia facilmente ser renomeado para entre mundos. Isso porque, diante dos encontros e atravessamentos que essa obra nos revela, não está, de um lado, uma escritora e, do outro, as “faxineiras”, como são chamadas (inclusive, o filme nos dá a entender que esse é um termo pejorativo).
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Isso porque, se podemos iniciar pensando numa suposta existência de pureza, nesse que seria um certo tipo de território contestado, não há: nem pureza, nem um território em si.
O que há, são contaminações, dobras de sentidos e um emaranhado de subjetivações que se manifesta e presentifica na intensidade e na intimidade dos afetos que vão ali sendo construídos.
Não podemos falar de “faxineiras”, como uma coisa só. Elas não são uma categoria abstrata. Cada uma delas carrega e demonstra, no filme, que, no fundo, ao nos aproximarmos, conseguimos ver e perceber, até sentir, como esse território – o das faxineiras – é um grande espaço de encontros e atravessamentos: entre elas mesmas, os “clientes”, os patrões e, ainda, a escritora em devir-faxineira.
Esse é, portanto, um território situado, que não contempla mais a configuração que sustenta a arbitrária separação “de um lado e do outro”. Cada uma delas, chega até o encontro com a escritora, carregando nas costas um mundo que é próprio.
Naquele momento, o que seria o “um-outro”, passa a ser “um-um”, como um território que fala não a partir da separação, mas daquilo que junta, abraça.
O filme termina, e alguns ainda podem querer sustentar a ideia de que as faxineiras continuarão sendo faxineiras e a escritora continuará sendo escritora. Eu prefiro pensar que a obra de arte – essa que é socialmente engajada – em sua potência transformadora, semeou um território que contesta o a si mesmo – e não um suposto outro.
Quero dizer que as afetações produzidas em cada uma daquelas mulheres enquanto lugar de encontro, bem como, o que disso surgiu como obra de arte – o livro – enunciam um horizonte de possíveis. Assim mesmo, no plural.
A precariedade do trabalho, esse sim, um território muito bem demarcado, deixa de ser, no livro, abstração ou estatística vazia. Aliás, vazia para os que estão diretamente distante dessa situação.
No entanto, o que a obra de arte faz – tanto o livro dentro do espaço narrativo do filme, quanto o próprio filme que assistimos – é nos fazer passar a (re)conhecer o assunto.
Novamente, não como abstração ou estatística, mas a partir da escala dos sujeitos e dos seus corpos, que, inclusive, são diferentemente afetados se forem corpos negros, corpos femininos, corpos trans.
Talvez aquela frase inicial (“os homens não limpam os banheiros”) não tenha sido só uma constatação incômoda, mas um sintoma. Não apenas de uma divisão de gênero, mas de tudo aquilo que ainda insistimos em manter separado: o saber e o fazer, o corpo e a palavra, quem limpa e quem escreve. O filme não dramatiza. Mas desloca. E talvez seja isso o mais político.
E, por isso, o “entre mundos” saiu do filme para permanecer em mim. E já não sou o mesmo depois disso.