brinde champanhe ano novo fim de ano
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*Artigo escrito por Mariana Weigert de Azevedo, psicóloga clínica e psicanalista, especialista em infância e adolescência. Atua em clínica particular com adolescentes e adultos, e também em orientação parental e pedagógica.

Muito antes da nossa contagem moderna, a virada de ciclo já era marcada por rituais. Povos antigos intuíam que o tempo não passa impunemente — ele atravessa, marca, transforma.

Os romanos, por exemplo, celebravam Jano, deus de dois rostos: um voltado para o passado, outro para o futuro. Janeiro vem dele. Tâmaras, figos e mel eram trocados para adoçar o ano que se iniciava.

Ainda hoje, tentamos dar sentido a essa travessia. Jogamos flores ao mar, vestimos branco, pulamos ondas, estouramos champanhe, comemos lentilhas. Buscamos tornar o desejo visível: que seja diferente, melhor, que algo mude.

Mas o que, exatamente, se espera que mude quando apenas um número no calendário avança? Como se, entre os extremos da memória e da esperança, houvesse uma fresta — e nela, a chance de transformar tudo.

No fim de dezembro, quando tudo se intensifica — festas, férias, balanços, reencontros —, há também quem não consiga acompanhar. Os índices de depressão aumentam nessa época, como mostram diferentes levantamentos. Não é só impressão: há mesmo algo de mais difícil em atravessar esse tempo.

Você também sente isso? Como se, por dentro, houvesse mais cansaço do que festa?

Entre luzes piscando e votos apressados, algo insiste em não se ajeitar. Um mal‑estar sutil, uma falta de entusiasmo difícil de explicar. E então surge a pergunta que não costuma caber nas legendas de fim de ano:

“Será que sou eu que não estou funcionando direito?”

A psicanálise não oferece promessas, mas perguntas. E quem sabe uma das mais urgentes seja esta: você sente que está realmente vivendo, ou tem se anestesiado para suportar um tempo que cobra demais e oferece de menos?

Um tempo que exige sucesso, saúde física e emocional, amor e família em dia, presença constante, superação — como se fosse possível viver tudo isso sem colapsar.

O fim de ano também convoca um tipo de acerto de contas com o tempo: metas que não se cumpriram, conversas que não aconteceram, promessas que viraram peso, repetições que achávamos que não teríamos mais. E, mesmo assim, algo em nós ainda insiste. Ainda deseja. Ainda sonha.

Que bom — que não percamos essa esperança, pois essa falta que flerta com ela talvez seja o que nos mantém em movimento.

Pode haver um desejo ingênuo — e nem por isso menos humano — de que as coisas melhorem. Que, mesmo com pendências, algo se reorganize por dentro. E ainda que não haja um “recomeço total”, será que é possível, à sua maneira, recomeçar de algum lugar?

Recomeçar, quem sabe, não seja virar tudo do avesso, mas dar um passo a mais — mesmo que pequeno — em direção ao que ainda faz sentido.

Ainda que certas zonas permaneçam em suspenso, é possível desejar com verdade. É possível sentir algo bom, mesmo sem a obrigação de estar bem ou ser feliz a qualquer custo.

Carlos Drummond de Andrade escreveu, com a delicadeza firme que só os poetas alcançam:

“Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo.
Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”

Talvez seja isso: aproveitar essa atmosfera de mudança — mesmo entre ruídos, excessos e silêncios — e transformar o desejo coletivo em gesto pessoal. Permitir que a virada não seja apenas simbólica, mas real.

O desejo nos visita como promessa, mas só se realiza se algo em nós topar também se mover. Ou nos responsabilizamos por mudar, ou o tempo nos repete.

E que 2026 não precise cumprir todas as suas expectativas — que baste o essencial: te reconectar com o que realmente importa.

Às vezes, o novo começa quando você muda o lugar de onde escolhe viver.

Mariana Weigert de Azevedo é psicóloga clínica e psicanalista
Mariana Weigert de Azevedo é psicóloga clínica e psicanalista. Foto: Acervo pessoal