Em Cariacica, o medo de perder a própria casa assola pelo menos 300 famílias de três bairros diferentes – todos ao redor do Hospital Pedro Fontes, criado em 1937 para atender os pacientes com hanseníase e desativado no fim do ano passado para se tornar um polo industrial.
Segundo notificação recebida por moradores, o município solicita os imóveis da região conhecida como “Fazenda Itanhenga”- doados pelo Governo do Estado em janeiro de 2024 – alegando que a ocupação é “precária” e se dá “sem a devida autorização ou título que legitime tal ocupação”.
O prazo para a desocupação é de 30 dias a contar da data do recebimento da notificação, que serão completados no próximo dia 5 de julho. A região engloba os bairros Padre Mathias, Vila Cajueiro e Pica-Pau.
“A ocupação irregular de bens públicos é expressamente vedada pela legislação brasileira” e “área pública não é passível de usucapião”, justifica a prefeitura via notificação.
Diante da situação, o Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam) da Defensoria Pública do Estado emitiu uma recomendação ao município no último dia 24 para que as famílias não sejam removidas e para que seja feita a devida regularização fundiárias dos ocupantes.
Conforme o órgão da Defensoria, 138 famílias, em sua maioria de baixa renda, foram notificadas.
Segundo a defensora Samantha Negris de Souza, muitos dos residentes são ex-pacientes e ex-funcionários do hospital.
Eles foram recebendo essas casinhas para morar ao longo do tempo. Eles moram lá há décadas e foram surpreendidos.
Um morador, que não quis se identificar, contou que o pai dele mora na região há cerca de 50 anos e foi notificado. Segundo ele, essas pessoas que receberam a notificação são aquelas que buscavam regularizar a situação junto à gestão municipal.
Ao efetivar a doação da área para Cariacica, o Estado determinou que caberia ao município “adotar todas as providências necessárias à regularização dos imóveis junto ao cartório competente, promovendo as retificações necessárias à transferência de titularidade das matrículas”.
Para tal regularização, o município autorizou, em 2024, a alienação dos imóveis públicos doados pelo governo aos “atuais ocupantes” que comprovassem a posse sobre o imóvel.
No entanto, no dia 6 de junho deste ano, um dia após a notificação extrajudicial enviada aos moradores, foi publicada uma lei para autorizar a destinação da área para “fomento da atividade empresarial na Fazenda Itanhenga”.
Os objetivos, segundo consta, são promover o desenvolvimento econômico local, atraindo investimentos e fomentando a competitividade das empresas instaladas; gerar empregos; incentivar a instalação de empresas de diversos setores; e estimular a inovação.
Recomendação da Defensoria Pública
O Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública alega, na notificação, que as moradias estão consolidadas há décadas e a ordem de desocupação está “desacompanhada de informações específicas quanto ao devido processo administrativo”.
Além disso, não ficou demonstrada excepcionalidade ou urgência para remover as famílias dos bairros e nem encaminhamentos habitacionais e assistenciais aos moradores, que também não tiveram direito à ampla defesa, conforme o Nudam.
Eventual e pontual remoção administrativa (autoexecutoriedade), para ser válida, além de dever se basear previsão legal específica, deve decorrer de devido processo legal administrativo, o qual deve ser acompanhado de contraditório, ampla defesa, prazo para desocupação e encaminhamentos assistenciais e habitacionais aos moradores em situação de vulnerabilidade social, devendo, ainda, ser demonstrada a excepcionalidade, a urgência e a proporcionalidade da medida.
Sendo assim, o núcleo considera que a prefeitura violou a determinação do Estado de promover a regularização fundiária na região: “Assim, ao menos quanto às moradias da área, destacadamente das pessoas de baixa renda, devem ter sua permanência assegurada, por meio da devida regularização”.
O que diz a Prefeitura de Cariacica
A Prefeitura de Cariacica foi procurada e o prefeito, Euclério Sampaio, refutou a versão apresentada pela Defensoria. Segundo o gestor, “a decisão da prefeitura já está tomada e nenhuma das famílias foi notificada”.
As cerca de 300 famílias que moram lá vão ter as escrituras (dos imóveis). O que eu estou reclamando é de pessoas que se apossaram de grandes propriedades e estão alugando para ganhar dinheiro.
Segundo Euclério Sampaio, as pessoas notificadas somam apenas 34. Todas elas, defende o prefeito, estão alugando grandes áreas públicas para lucrar e, a partir das notificações, “estão espalhando o terror para as demais famílias”.
O chefe do Executivo municipal defende que tem, sim, o compromisso de “assentar as pessoas” e regularizar a situação. “Não vou tirar ninguém de casa. As famílias terão a escritura”, afirmou.
Questionado sobre o polo industrial a ser implantado no local, o prefeito afirma que ele será construído na região, mas em uma “área grande que está desocupada”, o que não resultaria na remoção das famílias que moram nos bairros.