Entre desejo e realidade: reflexões sobre carreira e vocação para quem busca sentido no trabalho sem se perder nas pressões sociais
Foto: Arquivo pessoal

A angústia em torno da carreira é um ponto quase onipresente em nossa — ainda podemos chamá-la assim? — pós-modernidade. Há, evidentemente, quem trabalhe apenas para sobreviver, mas é inegável que, cada vez mais, as pessoas em geral buscam felicidade e propósito no que fazem.

Aqui, cabe um parêntese: talvez fosse mais realista admitir que muitos terão, com sorte, empregos que garantam a subsistência — e nada mais. Nesse caso, felicidade e propósito precisariam ser buscados em outros territórios da vida.

Já para aqueles que se dedicam — ou planejam se dedicar — a uma carreira no sentido mais tradicional, investindo em graduação, especializações e aperfeiçoamento, a angústia quase sempre aparece em algum momento.

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Na adolescência, a pressão para “escolher o que fazer para o resto da vida” vem carregada de um tom fatalista, como se desvios de rota ou mudanças de direção, no futuro, fossem sinônimo de fracasso.

Mesmo para quem já está consolidado em uma profissão, é comum a armadilha do “e se…?” — “o que poderia ter sido se eu tivesse sido outro?”, explorado, com perspicácia e sensibilidade, por Luis Fernando Verissimo na narrativa Versões de mim.

As escolhas profissionais também estão atravessadas pela questão financeira e pelo peso simbólico do status. A lógica neoliberal nos convence, todos os dias, de que ganhar dinheiro é o objetivo maior, como se dele derivasse a felicidade.

O ideal, claro, seria alinhar ganhos financeiros com algo que nos motive. Mas há outro perigo: acreditar que devemos estar sempre apaixonados pela carreira, vivendo um estado constante de flow — aquela experiência de realização tão intensa que nos faz perder a noção do tempo.

A vida real, porém, raramente funciona assim. Se, por um lado, somos pressionados a priorizar apenas o retorno financeiro, por outro, corremos o risco inverso: acreditar que a carreira precisa ser fonte constante de êxtase e realização.

No artigo Conselho para escolher carreira, publicado na Folha de São Paulo em 2010, Contardo Calligaris — cujos textos sinto bastante falta — reflete sobre a ideia de vocação. Ele lembra que, quando criança, aprendeu ser necessário, para se tornar sacerdote, “ter a vocação” — assim, com artigo definido. Isso simplificava as coisas: ou Deus chamava ou não chamava. Mas, como observa com humor, Deus não envia carta registrada.

Décadas mais tarde, em nossa sociedade ocidental, o temor de não ouvir a voz divina foi substituído pelo medo de não compreender o próprio desejo. Criamos a expectativa de que só seremos competentes, realizados e felizes se nossa profissão for a extensão natural de nossas paixões — como um hobby remunerado.

A primeira confissão que tenho a fazer: quando lia os textos de Contardo, pensava comigo mesma — como pode alguém que nem sabe da minha existência conseguir se conectar comigo pela escrita? Eu não havia me dado conta, mas meu desejo já estava ali.

Faz um ano que sou colunista como ele. Escrevo por puro gosto e me realizo diariamente nessa nova identidade, passando horas a escrever em estado de flow, sem conhecer você, caro leitor — mas sabendo que me lê. Vocação é isso: algo que fazemos porque amamos, porque acreditamos, porque simplesmente não conseguimos deixar de fazer.

Essa obsessão por “encontrar a paixão” está no cerne do livro O que devo fazer da minha vida?, de Po Bronson. Minha segunda confissão: gosto de livros de autoajuda — e talvez você se reconheça nisso. Sim, existem os bons e os ruins — e, desde a adolescência, já me aventurei por vários. Alguns, como o de Bronson, vão muito além das fórmulas prontas e oferecem reflexões genuinamente valiosas sobre a vida e o comportamento humano.

O jornalista entrevistou pessoas com trajetórias diversas, quase sempre atravessadas por crises de carreira. Em uma das histórias, uma médica ginecologista e obstetra de 28 anos abandona a profissão (não sem muita dor e hesitação) após perceber que seu temperamento não se encaixava nas exigências emocionais do trabalho: chorava pelos pacientes, sofria com as perdas, vivia sob o medo de ser processada. Não se conta o que ela fez depois, mas o primeiro passo — deixar o hospital — foi essencial para ser fiel a si mesma.

Em outro relato, Diane, de 34 anos, passara por empregos em bancos, ensino de redação e direito de marcas e patentes. Tida como “viciada” em mudança, entediava-se rápido e logo partia para outra função. Até perceber que, talvez, nunca tivesse realmente se dedicado a nenhum trabalho com profundidade. Decidiu permanecer em um dos empregos o tempo suficiente para descobrir se, de fato, era para ela. O que mudou não foi a função, mas o modo de se implicar nela.

Alain de Botton, na palestra TED Uma filosofia de sucesso mais bondosa e delicada, aponta outra fonte de angústia: o esnobismo profissional. Vivemos cercados por pessoas que julgam — e são julgadas — pelo “o que você faz?”. Não por acaso, essa costuma ser a primeira pergunta feita quando conhecemos uma pessoa nova, como se a resposta moldasse toda a identidade do sujeito. Santo Agostinho, em Cidade de Deus, já advertia: é pecado avaliar alguém pelo cargo que ocupa.

Nunca tivemos expectativas tão altas em relação às nossas carreiras. E, na sociedade contemporânea, marcada pelo individualismo, não cultuamos nada além de nós mesmos. Nossos heróis são humanos, e isso nos deixa ainda mais vulneráveis ao olhar alheio. Muitas vezes, o significado de sucesso que perseguimos não é nosso, mas herdado das mídias, das redes sociais, das narrativas que nos cercam.

De Botton não sugere que abandonemos nossas ideias de sucesso, mas que nos certifiquemos de que elas são, de fato, nossas — e não projeções de terceiros.

Pessoalmente, embora outras profissões gozem de mais prestígio social que a de professor, e embora muitas paguem melhor, sei que trabalho com o que gosto: com livros, escrita, aprendizado e troca diária com alunos e colegas também apaixonados pelo que fazem.

Aposto no desejo — e, como a psicanálise ensina (ainda que com outro vocabulário), é preciso viver com o que nos dá tesão. Talvez não acertemos em todas as frentes: carreira, amor, família, finanças, amizades, hobbies. Mas vale seguir as pistas que nossos desejos deixam pelo caminho, pois é essa proximidade — com o que realmente importa para cada um — que, no limite, redesenha o sentido da nossa própria trajetória.

Larissa O’Hara

Colunista

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).