
A bala-doce guarda um perigo, primeiro para os dentes, depois para a saúde em geral. Até pouco tempo ela esteve em nosso imaginário como um momento saboroso, de felicidade, de fugacidade e também de engano. Autoengano. Por que o doce que ela propõe acaba logo e amarga com um misto de prazer e crueldade.
A bala é pouca e nós queremos mais. E mesmo se tivesse mais, haveríamos de querer ainda mais. Nunca nos damos por satisfeitos. Não aprendemos isso, embora isso seja uma coisa que pode ser aprendida a fim de desenvolvermos o que chamamos de humanidade. Como diz um velho ditado: o bom não basta, queremos o ótimo, aí começa o inferno.
BALEIRO. Este é o titulo de um dos trabalhos do artista Carlos Eduardo Borges apresentado no encontro Arte+ (Atelier FA. setembro 2025). Trata-se de uma pequena escultura participativa, feita com cartuchos de pistolas e fuzis recolhidas após tiroteios na comunidade Vigário Geral, Rio de Janeiro.
Formalmente o objeto é um cubo de 24x24x24cm, vazado sobre uma mesa, cheio de balas de leite enroladas em papel branco como se fossem bombons. O público pode pegar as balinhas e chupá-las, mas ao desenrolá-las, descobre, carimbada no papel a frase: “Você pode levar bala”. Aí instala-se o susto, revela-se o inferno.

Obra “Baleiro”, de Carlos Eduardo Borges. Imagem do Autor.
A frase que poderia ser um convite a um prazer fugaz é um aviso, ou uma ameaça. Dá-se o reverso. Isso porque vivemos numa embalada a tiros de revólver, de fuzil, de metralhadora, de drones. Saímos da pedra lascada, passamos pela espada e caímos nas armas de fogo. A relação paradigmática entre a bala doce e a bala de revolver revela um abismo. Expõe para nós a violência brutal exercitada através das armas de fogo e seus usuários.
O artista informa que para fazer “Baleiro” trocou balas de chupar pelos cartuchos na Casa da Paz (Vigário Geral – RJ – projeto de Caio Ferraz). Os cartuchos achados nas ruas e nas casas de Vigário Geral deveriam ser objetos assustadores para os moradores, mas virou parte do cotidiano daquelas pessoas. Elas vivem entre tiros, balas, cartuchos e, guardado a distância, nós também. Mas distância entre um lugar e outro é tênue. Daí incômodo da obra Baleiro de Carlos Borges.
Existe uma arquitetura da bala, um sistema de crime e de poder. A ponto de ter se tornado plataforma partidária na politica brasileira: armar os cidadãos, fabricar armas, vendê-las – aparentemente para se defender, a bala, de outros cidadãos. Mas o fato é que todos podem levar bala. Olhando “Baleiro” de frente, os cartucho apontam para você; de lado apontam também para você.
Não há outro lado, pois os quatro lados tiram. São cartuchos de diversos calibre, formando uma parede de metal, vazada. Quando todas as balas de leite são retiradas e o baleiro fica vazio, através dos orifícios dos cartuchos, você vê o lado de dentro, e o que há lá? Outros cartuchos. O vazio geométrico, semelhante a um fosso de um edifício com os apartamentos ao redor. É isso. Olhando de dentro para fora você atira. De fora para dentro, você recebe o impacto. Na verdade já os recebeu, pois os cartuchos são de balas que já foram atiradas.
Fotos: arquivo do colunista