
A 36ª Bienal de São Paulo, que acontece entre 6 de setembro de 2025 e 11 de janeiro de 2026, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, propõe uma reflexão radical sobre o que significa ser humano hoje. Intitulada “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”, a mostra se inspira no poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, e parte da ideia de que a humanidade não é uma condição, mas um exercício contínuo de relação, escuta e invenção coletiva. Sob curadoria geral de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, acompanhado por Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza e Keyna Eleison, a edição se propõe a pensar a arte como uma forma de atravessar tempos e diferenças.
Dividida em capítulos, o conceito curatorial se estrutura a partir da metáfora do estuário — o encontro de diferentes águas —, símbolo de mistura e confluência, em oposição às fronteiras rígidas e hierarquias estabelecidas. Assim, a Bienal se posiciona como um território de passagem e fricção, onde múltiplas narrativas coexistem. O curador sugere que “a humanidade deve ser praticada como verbo”, apontando para a necessidade de reinventar modos de viver e de coexistir num mundo marcado pela crise ambiental, pela violência e pela perda de referências éticas.
A expografia, assinada pelos arquitetos Gisele de Paula e Tiago Guimarães, dialoga com essa fluidez conceitual. O espaço expositivo da Fundação Bienal ganha margens sinuosas, percursos não lineares e zonas de silêncio, convidando o público a percorrer o pavilhão de modo intuitivo e sensorial. Mais do que uma exposição, a 36ª Bienal pretende ser uma experiência imersiva, onde o tempo de observação e o deslocamento físico se tornam parte da obra.
Participam desta edição cerca de 120 artistas e coletivos de diferentes partes do mundo, com destaque para produções do Sul Global, práticas comunitárias e trabalhos que cruzam arte, espiritualidade e ecologia.
Por que praticar a humanidade, se já somos humanos?
O tema da 36ª Bienal de São Paulo nos lembra que ser humano não é uma condição garantida pelo nascimento, mas uma construção contínua — uma escolha cotidiana. Falar da humanidade como prática, portanto, é reconhecer que ela exige exercício, esforço, consciência. É algo que se faz, e não apenas algo que se é.
Vivemos um tempo em que a tecnologia, a pressa, o consumo e o medo muitas vezes nos afastam da escuta, da empatia e da presença — dimensões que sustentam a humanidade em nós. Quando perguntamos se perdemos a capacidade de humanizar, talvez devamos inverter a questão: não é que tenhamos perdido, mas que deixamos de praticar. A humanidade, como um músculo, atrofia.
Humanizar é reconhecer a opacidade do outro, como diz Édouard Glissant — aceitar que o outro não é transparente nem espelho de nós mesmos. É um gesto política de se manter em relação consigo, com o meio, com os outros. Nesse sentido, praticar a humanidade implica resistir à indiferença, ao automatismo e à lógica da separação.
O que a 36ª Bienal propõe, ao evocar o poema de Conceição Evaristo, é justamente uma convocação à delicadeza, à pausa e à escuta — valores que a arte ainda é capaz de despertar. Porque a arte, ao nos desestabilizar e nos colocar em contato com o que é vivo, nos reensina, que ser humano, então, não é uma garantia, mas uma prática de cuidado, presença e imaginação.
Flávia Dalla Bernardina é advogada em propriedade intelectual e curadora de arte. Mester em Arte Visuais pelo PPGA/UFES. Coordena e escreve para a coluna Arte+.