A imagem que ilustra a abertura deste texto é do artista australiano Ron Mueck, cujas obras são produzidas utilizando materiais sintéticos como silicone, fios naturais e artificiais reproduzindo personagens humanos em diferentes escalas: das imensas às pequenas. Neste caso é uma peça que mede 110,50 x 501,00 x 134,50 cm., ou seja, maior do que um automóvel.
O impacto visual decorrente da apreciação da obra impacta tanto do tamanho, quanto do realismo empregado na produção da peça.
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É justamente a questão do “efeito de realidade” que motivou a refletir sobre Arte Visual e os bebês reborn considerando que os processos, utilizados pelos artesãos, para a confeccionar os bonecos são semelhantes ao usados por Mueck em suas obras, que remetem ao Hiperrealismo, movimento que fez parte de manifestações de artistas entre as décadas de 60 e 70 do século passado.
A imagem mostra uma peça que representa uma criança recém-nascida típica, como se tivesse acabado de sair do útero e liberta da bolsa amniótica há minutos.
O efeito realístico, somado ao super dimensionamento da peça causam estranhamento. Talvez seja este mesmo estranhamento que os bebês reborn provoquem.
No caso de Mueck, sabe-se, com certeza, que se trata de uma obra de arte, situada no campo das criações, simulações, proposições conceituais e estéticas que não se confundem com a realidade.
Não há nenhuma relação entre tal objeto e o mundo natural, é justamente a quebra, a ruptura com a realidade que dá sustentação à proposição do artista.
Bebês reborn: entre a verdade e a mentira
Por outro lado, o estranhamento proporcionado pelos Bebês Reborn, parece estar no caminho oposto, o da superposição da representação fiel de uma criança de verdade.
O “efeito de realidade” imposto à peça cria a sensação inicial de que se está diante de um bebê, mas é seguido de um impacto desestabilizador quando se constata que é algo falso, daí surge o confronto entre verdade e mentira.
Pode ser que seja esta sensação que leva muitas pessoas a reagirem negativamente a esta “moda”, pois ninguém gosta de ser enganado.
Parece haver, por parte das pessoas que recorrem ao uso de tais manequins, a intenção de confundir, iludir os demais, talvez isto que gere o efeito negativo em relação a tais objetos e os diferencie das criações artísticas.
A intensidade com que isto vem ocupando as mídias nacionais, potencializa o surgimento de opiniões polarizadas entre os que “adotam” tais bonecos e passam a exibi-los como se fossem humanos motivando aqueles que rechaçam tal comportamento a se manifestarem.
No campo da Arte Visual questões relativas à criação, criatividade, simbolismo, alegorias, imaginário, imaginação e fantasia são habituais e, por isto, me sinto à vontade em manifestar minha visão em relação a este tema, especialmente pelo fato de que este assunto se tornou quase obrigatório para quem se dedica a produção de conteúdo em mídias de informação em várias áreas do conhecimento.
Parece contraditório que, numa civilização na qual a “alta tecnologia” já superou muitas das crenças elementares, a disseminação de comportamentos e condutas que tendem a transferir para objetos inanimados valores e cuidados original e necessariamente dedicados a seres humanos, aos olhos de muitos, é preocupante.
Especialmente quando algumas pessoas vêm, literalmente, “adotando” manequins configurados e travestidos de bebês para simular seres humanos como se fossem frutos de sua procriação, ou seja, tomando algo artificial por natural.
A diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o real e o imaginário
A ideia da Simulação, foi tratada pelo filósofo francês Jean Baudrillard que, em 1981, quando publica o livro: Simulacros e Simulação, no qual discute a relação entre realidade, símbolos e sociedade partindo do pressuposto de que: Simulacros são cópias que representam elementos que nunca existiram ou que não possuem equivalência na realidade.
Na introdução faz uma citação, sobre o comportamento de quem simula, que irá orientar o percurso do livro:
‘Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas’. (Littré.) e conclui: Logo fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’”, negrito adicionado por mim.
Colocar em causa a diferença entre o verdadeiro e o falso, do real e do imaginário é justamente o fator implicado nos comportamentos que vêm sendo demonstrados por alguns proprietários deste tipo de manequim.
Já há relato de casos de pessoas que justificaram prioridade em atendimento por terem bebês de colo, só que Reborns, um simulacro; outros que relatam condutas de pessoas que marcam consultas com pediatras para avaliar a saúde de seu Reborn.
Serviços oportunos ou oportunistas oferecidos como partos simulados, ambientes para alimentação e higiene, bufês para festas e eventos dedicados aos Reborns e até mesmo disputas judiciais instauradas para definir pensão ou quem deve assumir a guarda destes “bebês” quando de separações ou divórcios. Neste sentido, parece que as coisas estão indo para além do “normal”.
Não querendo julgar, mas já julgando, não é incomum que as bonecas, como objetos lúdicos, tenham participado das brincadeiras infantis.
Estimular os afetos das futuras mães sempre foi um comportamento tido como normal e amplamente aceito na sociedade. Nada demais se crianças recorressem à fantasia para projetar funções típicas do adulto como ter filhos, cuidar e orientar seus passos durante a vida.
A questão é que a criança conseguia distinguir o que era fantasia do que era real e, quando instada a realizar outras atividades, deixava de lado o mundo da fantasia e se integrava à vida cotidiana sem dúvidas, apegos ou arrependimentos.
O que parece estar acontecendo com mães e pais reborn é o contrário, há uma reversão no comportamento, ao invés de dedicar seu tempo de lazer às atividades lúdicas ou divertidas, as superpõem ao mundo real criando um choque entre fantasia e realidade: adultos revelando comportamentos infantis em sua maturidade.
Não se pode desconsiderar o fato de que o uso de simulacros de bebês é bem recebido em tratamentos clínicos vinculados a distúrbios mentais como perda de memória ou pessoas que sofreram perdas de entes queridos onde, tais objetos, atuam como uma espécie de muletas, ou melhor, suporte e apoio terapêutico, mas este não parece ser o caso de mães e pais Reborns que inundam a internet em busca de notoriedade e de likes… e… sofrem “deslikes”.
Uma polêmica em curso
Bem, pode-se dizer que há duas condições aceitáveis para criar relacionamentos com objetos deste tipo: lúdica e clínica. Tanto no contexto lúdico quanto clínico, há fatores positivos que beneficiam tanto as crianças ou mesmo adultos ao tomarem tais objetos como fonte de diversão ou de cura por terem sofrido perdas de pessoas ou memória ambos podem se beneficiar.
Por outro lado, há que se ponderar se os casos que se afastam destas duas condições estariam dentro do razoável ou saudável.
Como apontada, a relação com objetos pode ser prazerosa, isto é comum quando pessoas têm satisfação em colecionar coisas.
Dificilmente alguém é discriminado por juntar objetos que lhes dão prazer como miniaturas, moedas, relógios, selos, carrinhos, super-heróis, chaveiros entre outras coisas e até bonecas Barbies, que não são nem um pouco Reborns. Contudo, há que se cuidar para que tais comportamentos não se tornem compulsivos ou alucinados.
Ao que parece a interpretação que tem sido aferida a respeito dos pais Reborns é que esbarram nas fronteiras e limites entre saudável e não saudável. Neste caso, ao confundirem fantasia com realidade são passíveis de atenção psicológica e suscetíveis a tratamentos clínicos.
Tal conduta têm extrapolado o senso de realidade ao ponto de várias instâncias governamentais apresentarem projetos legislativos para regulamentação e restrição de prioridades e da apropriação de serviços públicos de saúde por Reborns, inclusive já se discute se o sistema deve oferecer atendimento aos pais Reborns por apresentarem tal comportamento.
A polêmica está em curso, será que este não é mais um indício de que a humanidade caminha para o avesso? Pense nisto.