Parte 2
Pensando sobre os tempos, ainda. O tempo que esses objetos levaram em seu ofício, o tempo de uso para o cotidiano, o tempo circular do ritual, o tempo sedimentado pelas tantas camadas factuais e históricas, representadas nas materialidades daqueles povos. Tempo este que, por mais que seja escavado ou esculpido pela ação humana, não nos revela sua(s) vera(s) face(s).
Menciono, ainda, o tempo grego do tipo Kairós, experimentado como oportunidade única: momento fecundo em que se vislumbra uma saída, uma tomada de decisão, uma chance de transformação. Enquanto Chronos espacializa o tempo, nos dando dias, horas, meses e anos, Kairós nos provê com a qualidade: tudo pára diante de alguma revelação. Por isso Kairós também é considerado o contato do humano com alguma divindade.
Confira aqui a Parte 1 do texto:
A História da Arte Moderna nos permite imaginar um encontro deste tipo, o que provocou uma grande transformação nas concepções estruturais e formais de algumas pinturas da primeira década do século XX. Trata-se do dia invernal em que Pablo Picasso e André Derain foram ao Museu Etnográfico do Trocadero, Paris, ao fim de1906.
Picasso descreve o lugar como solitário; frequentemente fechado, o museu cheirava mal e não atraía artistas. Quis fugir, mas permaneceu ali. Ao conversar sobre sua experiência com André Malraux, mencionou os termos: choque, revelação, força. Durante o tempo de exame das máscaras, Picasso percebeu “todos esses objetos que os homens haviam criado com um propósito sagrado e mágico, para que servissem de intermediários entre eles e as forças desconhecidas e hostis que os cercavam, tentando assim superar seu medo, dando-lhes cor e forma”.
Kairós: a magia se impõe
Foi quando teve sua experiência Kairós: “esse era o próprio significado da pintura. Não é um processo estético: é uma forma de magia que se interpõe entre o universo hostil e nós, uma forma de tomar poder, impondo uma forma aos nossos terrores, bem como aos nossos desejos. No dia em que compreendi isso, soube que havia encontrado o meu caminho”. (Picasso citado por Françoise Gilot, no livro Une autre histoire de l’art, 2013, p.42-3).
A partir dali, sabemos a trajetória iniciada com Demoiselles d’Avignon, às experiências analíticas e sintéticas do Cubismo, compartilhadas com Georges Braque, Juan Gris e outros. O contato com as máscaras provocou um corte nas formas agora “talhadas a machado”, conforme Ferreira Gullar; também provocou um corte na espacialidade de então, ainda devedora da perspectiva linear renascentista. A forma se aproximava cada vez mais de seu fundo, trazendo a pluralidade de pontos de vista em uma mesma representação, mais sintética.
E dali, estes e outros aspectos formais e estruturais atingiram demais artistas de vanguarda. Alguns historiadores minimizam o encontro revelador de Picasso e as máscaras; prefiro pensar que a máscara africana realizou um diálogo singular com o artista. Renato Araújo da Silva (catálogo da exposição Arte Africana, 2024) nos coloca que nos museus, as máscaras se alijam de seu poder ritualístico; mas mesmo como objetos museais, elas possuem a potência da permanência de seu poder e mistério.
Espelhamentos entre faces
Nesta presentidade em que nos encontramos, estamos diante de muitos objetos; grande parte deles são máscaras. A expografia orienta algumas posições destes objetos na altura de nosso olhar, considerando-se uma estatura mediana. Não se trata, a meu ver, de uma intenção/ação ingênua. Tratar-se-ia de uma estratégia que permite que esses objetos nos interroguem. Se comumente a Arqueologia e a História os interrogam, a exposição é o próprio espaço para o tempo Kairós, ao permitir que toda a densidade daquelas formas nos perguntem quem somos, de onde viemos, para onde vamos.
A possibilidade de um espelhamento entre a minha face e a face de madeira permite diversas interpretações. Se Picasso percebeu aquele teor de magia sendo transferido para sua experiência pictórica, de que modo a magia de uma ou mais máscaras poderá me provocar, seja como sujeito, seja como artista?
A face de madeira segue seu rumo, em viagem pela nau do tempo. No diálogo mudo entre máscaras, entre tempos e matérias – o ato de me reconhecer ali, constatando que minha cultura e, portanto, minha existência, deve tanto àquele corpo em obra que me interpela em seu silêncio.