Arte

Cultura material africana na Galeria Arte e Pesquisa UFES

Na parte 2 de sua reflexão, a artista e professora Claudia França falar sobre a exposição "Arte Africana: Máscaras e Esculturas", em cartaz na GAP - Galeria de Arte e Pesquisa - da UFES.

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Máscar ao estilo Ngil. Grupo Cultural Fang, Gabão. Madeira policromada. 68x23x13 cm. Foto: Rafael Costa.
Máscar ao estilo Ngil. Grupo Cultural Fang, Gabão. Madeira policromada. 68x23x13 cm. Foto: Rafael Costa.

Parte 2

Pensando sobre os tempos, ainda. O tempo que esses objetos levaram em seu ofício, o tempo de uso para o cotidiano, o tempo circular do ritual, o tempo sedimentado pelas tantas camadas factuais e históricas, representadas nas materialidades daqueles povos. Tempo este que, por mais que seja escavado ou esculpido pela ação humana, não nos revela sua(s) vera(s) face(s).

Menciono, ainda, o tempo grego do tipo Kairós, experimentado como oportunidade única: momento fecundo em que se vislumbra uma saída, uma tomada de decisão, uma chance de transformação. Enquanto Chronos espacializa o tempo, nos dando dias, horas, meses e anos, Kairós nos provê com a qualidade: tudo pára diante de alguma revelação. Por isso Kairós também é considerado o contato do humano com alguma divindade.

Confira aqui a Parte 1 do texto:

https://www.folhavitoria.com.br/cultura/arte/exposicao-sobre-cultura-material-africana-abre-na-gap-ufes/?utm_source=whatsapp&utm_medium=lista&utm_campaign=cultura&utm_content=arte

A História da Arte Moderna nos permite imaginar um encontro deste tipo, o que provocou uma grande transformação nas concepções estruturais e formais de algumas pinturas da primeira década do século XX. Trata-se do dia invernal em que Pablo Picasso e André Derain foram ao Museu Etnográfico do Trocadero, Paris, ao fim de1906.

Picasso descreve o lugar como solitário; frequentemente fechado, o museu cheirava mal e não atraía artistas. Quis fugir, mas permaneceu ali. Ao conversar sobre sua experiência com André Malraux, mencionou os termos: choque, revelação, força. Durante o tempo de exame das máscaras, Picasso percebeu “todos esses objetos que os homens haviam criado com um propósito sagrado e mágico, para que servissem de intermediários entre eles e as forças desconhecidas e hostis que os cercavam, tentando assim superar seu medo, dando-lhes cor e forma”.

Kairós: a magia se impõe

Foi quando teve sua experiência Kairós: “esse era o próprio significado da pintura. Não é um processo estético: é uma forma de magia que se interpõe entre o universo hostil e nós, uma forma de tomar poder, impondo uma forma aos nossos terrores, bem como aos nossos desejos. No dia em que compreendi isso, soube que havia encontrado o meu caminho”. (Picasso citado por Françoise Gilot, no livro Une autre histoire de l’art, 2013, p.42-3).

A partir dali, sabemos a trajetória iniciada com Demoiselles d’Avignon, às experiências analíticas e sintéticas do Cubismo, compartilhadas com Georges Braque, Juan Gris e outros. O contato com as máscaras provocou um corte nas formas agora “talhadas a machado”, conforme Ferreira Gullar; também provocou um corte na espacialidade de então, ainda devedora da perspectiva linear renascentista. A forma se aproximava cada vez mais de seu fundo, trazendo a pluralidade de pontos de vista em uma mesma representação, mais sintética.

E dali, estes e outros aspectos formais e estruturais atingiram demais artistas de vanguarda. Alguns historiadores minimizam o encontro revelador de Picasso e as máscaras; prefiro pensar que a máscara africana realizou um diálogo singular com o artista. Renato Araújo da Silva (catálogo da exposição Arte Africana, 2024) nos coloca que nos museus, as máscaras se alijam de seu poder ritualístico; mas mesmo como objetos museais, elas possuem a potência da permanência de seu poder e mistério.

Espelhamentos entre faces

Nesta presentidade em que nos encontramos, estamos diante de muitos objetos; grande parte deles são máscaras. A expografia orienta algumas posições destes objetos na altura de nosso olhar, considerando-se uma estatura mediana. Não se trata, a meu ver, de uma intenção/ação ingênua. Tratar-se-ia de uma estratégia que permite que esses objetos nos interroguem. Se comumente a Arqueologia e a História os interrogam, a exposição é o próprio espaço para o tempo Kairós, ao permitir que toda a densidade daquelas formas nos perguntem quem somos, de onde viemos, para onde vamos.

A possibilidade de um espelhamento entre a minha face e a face de madeira permite diversas interpretações. Se Picasso percebeu aquele teor de magia sendo transferido para sua experiência pictórica, de que modo a magia de uma ou mais máscaras poderá me provocar, seja como sujeito, seja como artista?

A face de madeira segue seu rumo, em viagem pela nau do tempo. No diálogo mudo entre máscaras, entre tempos e matérias – o ato de me reconhecer ali, constatando que minha cultura e, portanto, minha existência, deve tanto àquele corpo em obra que me interpela em seu silêncio.

Cláudia França

Colunista

Cláudia França é artista visual, natural de Belo Horizonte, formada pela Escola de Belas Artes da UFMG, habilitada em Desenho e em Escultura. É mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Artes pela UNICAMP e pós-doutora em Psicologia pela UFMG. Atualmente está no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em que se dedica, no mestrado e no doutorado, ao entendimento das dinâmicas do processo de criação.

Cláudia França é artista visual, natural de Belo Horizonte, formada pela Escola de Belas Artes da UFMG, habilitada em Desenho e em Escultura. É mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Artes pela UNICAMP e pós-doutora em Psicologia pela UFMG. Atualmente está no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em que se dedica, no mestrado e no doutorado, ao entendimento das dinâmicas do processo de criação.