Artur Barrio - "Livro de Carne", 1978-79.
https://acervolivrodeartista.blogspot.com/2012/09/arthur-barrio-livro-de-carne.html
Artur Barrio - "Livro de Carne", 1978-79. https://acervolivrodeartista.blogspot.com/2012/09/arthur-barrio-livro-de-carne.html

A imagem que abre este texto tem mais de 40 anos, mas ainda provoca estranhamento. Um objeto tradicional, como um livro, é construído a partir de lâminas de carne bovina e exposto para manipulação dos espectadores em uma mostra de arte.

Este feito é de Artur Barrio, um artista luso-brasileiro cujas obras não podem ser colecionadas ou fazer parte de acervos de instituições de arte visual. São, em geral, obras conceituais que valorizam a experiência, a interação e não a imagem ou o objeto. O uso de materiais efêmeros e precários, como a carne que deu origem a este “livro”, conduz à decomposição e descarte.

Se tivesse sido produzida hoje em dia, a proposição não estaria restrita ao artista, mas seria concebida como um documento textual indicando o modo de apresentar o objeto em mostras de instituições ou colecionistas.

Arte sem objeto

Na arte contemporânea é comum surgirem manifestações que operam com materiais diversos: desde os tradicionais até a ausência deles e sobretudo a presença de materiais alternativos e inusuais.

O percurso da arte visual, especialmente no contexto da Pós-modernidade, autorizou os artistas a trabalharem com tudo e até nada. A ideia de arte conceitual possibilitou que os processos se tornassem prioritários e os suportes opcionais.

A onda de “desobjetualização” se tornou um recurso estético-criativo importante para o contexto atual e abriu também a possibilidade de intervenções bem diferentes, divergentes e virtuais. Muitas obras perderam o suporte, o corpo e até imagem, basta citar as produzidas digitalmente e armazenadas em arquivos NFT.

Se voltarmos no tempo, às primeiras imagens produzidas pelo ser humano, estaremos diante figuras realizadas em paredes rochosas em com materiais tomados do entorno como argila, carvão, resinas, óxidos, gorduras entre outras matérias, orgânicas ou minerais. Apropriando-se delas pode dar existência ao que passamos a entender como arte visual. Naquele caso, recorrer a matérias orgânicas ou inertes era o meio para dar vazão à criação e criatividade.

Contudo, com o passar dos milênios e séculos, dada à presença e recorrência das manifestações artísticas, tanto os materiais quanto instrumentos, processos e modos de fazer, foram se transformando e surgiram pessoas especializadas e materiais próprios para uso no contexto da Arte.

A grande conquista da especialização artística ocorreu no período Moderno com a criação das Academias de Arte no Renascimento. A partir dali muitos artistas passaram a ser preparados para exercerem esse mister dentro de um processo de formação sistematizado e até padronizado levando ao surgimento do que se chamou, já na França, de Belas Artes. Esse modelo de ensino se propagou pelo mundo e acabou influenciando o Sistema de Arte como um todo e, até hoje, seus efeitos são sentidos.

As vanguardas históricas e as novas proposições estéticas

Em contraposição a este modelo, em fins do século XIX, surgiram tendências de oposição a ele, especialmente as chamadas Vanguardas Históricas que passaram a investir em novas proposições estéticas, processos criativos, materiais e modos de fazer. Gradualmente o antigo modelo foi arrefecendo e novas possibilidades surgindo.

Bem, com isso, entram os materiais “novos” ou “inovadores”, como também os recursos matéricos ou imateriais e conceituais que vão polemizar os debates sobre a compreensão da Arte Contemporânea.

É aqui que entram os novos recursos. As manifestações artísticas passaram a recorrer a ocupações como as instalações e intervenções no ambiente natural ou urbano, os artistas também recorreram ao seu corpo para realizar performances ou infligir obras neles próprios. Com isto os materiais tradicionais, muitos deles já em avançado estado de industrialização, passaram também a serem confrontados com objetos encontrados ou escolhidos, montagens ou ocupações e, pasmem, materiais orgânicos em decomposição e até lixo mesmo.

Tais mudanças passaram a dialogar com as questões individuais, psicossociais, sociais e ambientais levando a Arte a patamares experimentais inusitados, impensados e complexos de tal modo que os espectadores, em boa parte das mostras ou manifestações, se viam atônitos e com dificuldades de apreender e compreender tais proposições.

Obras que recorrem a materiais orgânicos como sangue, cabelo, folhas, ossos ou a resíduos urbanos, industriais como plástico, metal, lixo eletrônico e mesmo a materiais tomados do contexto residencial e reutilizados e reciclados como café, vinho, resíduos de frutas, vegetais, terra, carvão, entre outros, passaram a integrar obras de arte e provocar vários problemas, especialmente, os que remetem à conservação de tais materiais quando obras deste tipo passam a fazer parte de acervos e coleções.

O que esperar da arte visual no futuro?

Por outro lado, obras inexistentes, como as criadas para instalação e configuradas em documentos ao portador que autorizam seus proprietários a promoverem a ocupação de espaços a partir de orientações prescritas pelo autor, inclusive sua venda e transferência, se tornaram comuns no contexto atual.

Outras, também inexistentes, como a sugestão de um local demarcado no espaço geográfico no qual supõe-se a existência “fantasmagórica” de uma obra de arte. Ainda a realização de Blockchain, tecnologia de registro digital que armazena informações em blocos interligados e protegidos por criptografia que também podem ser adquiridos e transferidos como cripto moedas na rede mundial de computadores.  

Enfim, que mundo é esse em que a arte, antes constituída por peças corporificadas e glorificadas como obras primas se tornou este ambiente de contínua transformação e desaparecimento?

O que esperar da arte visual no futuro? Vale a pena refletir sobre isso!

Isaac Antônio Camargo

Colunista

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.