
[1] Trecho da música “Lugar comum”, de Gilberto Gil e João Donato.
Uma exposição artística é encerrada: desmontagem, embalagem, transporte para outro lugar. Aparentemente, este é um conjunto de ações comuns, esperadas até. Mas poderiam também ser consideradas “banais” na trajetória artística de alguém ou de um grupo. Essa suposta banalidade não é pontuada em nossas biografias. Isto porque desmontar, embalar obras e transportá-las guarda certa invisibilidade com relação ao seu oposto: transportar, desembalar e montar uma exposição.
Pontuamos as exposições como o ápice de um processo, o momento mágico de ereção de formas, situações e ideias à espera das visitações, encontros, falas e textos. Se as exposições são fatos artísticos que se tornam sociais, acessíveis e públicos, as montagens e desmontagens ocorrem no espaço fechado e isolado. Por maior que seja a magia da situação expositiva, ela é o intervalo entre momentos de incertezas e dúvidas, de testes e erros.
Na montagem, há um tipo de silêncio em meio aos barulhos de pessoas e equipamentos. Ali, são discutidas novas possibilidades diante de problemas, mas resta uma bolha de silêncio em cada pessoa que percebe um detalhe, trecho ou situação que o projeto não conseguiu prever ou dominar. Já o silêncio da desmontagem é outro: é um apagar de rastros, o esforço de deixar o espaço vazio livre da memória do acontecido; sem pertença, o espaço ocupado será retomado nos registros visuais.
Em termos institucionais acadêmicos, parece haver, ainda, um não-entendimento sobre o tempo de montagem e a permanência de um artista-docente em sua própria exposição quando ela ocorre distante de seu local de trabalho. A solicitação de deslocamento para desmontá-la é menos compreendida ainda. Em meu caso, é exigido que retorne ao “trabalho” um ou dois dias no máximo, após a abertura. Sendo assim, a exposição pronta é como aquela amiga recente que antes existia apenas virtualmente, mas com a qual não terei muito tempo de convívio real. Posso pensar que me tornei mais íntima das montagens e desmontagens de instalações e exposições do que delas mesmas, enquanto entes visíveis e públicos.
Nuvem na Galeria
Há alguns dias, encerramos a exposição coletiva Nuvem na Galeria em Belo Horizonte. Fui a curadora de trabalhos de oito artistas pós-graduandos e egressos do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES: Marcelo Gandini, Luan Coelho, Karol Rodrigues, José Henrique Rodrigues, João Cóser, Iasmim Dala Bernardina, Francisco Pereira, André Magnago. Não pude comparecer na desmontagem, mas mesmo assim, me pus a pensar naquelas passagens pessoais cuja exposição era em locais distintos de meu local de trabalho.
Quero pensar aqui no espaço de uma galeria, museu ou centro cultural propriamente dito. Este espaço expositivo torna-se soma de camadas funcionais e camadas de tempo que o tornam espesso. Deleuze e Guattari discutem, no volume 5 de Mil Platôs (1996), sobre as composições entre espaços lisos e estriados. Estes possuem natureza sedentária, enquanto os lisos são nômades. Um espaço liso adquire estrias, transforma-se em espaço estriado, havendo uma reciprocidade neste movimento. Os espaços estriados adquirem mobilidade e assim, são devolvidos à situação oposta; como pensar nesses trânsitos bilaterais em nosso cotidiano?
Os filósofos se valem de tecidos para tratar desses modos de deslocamento. Por exemplo, o bordado seria um uso do espaço estriado. Ele parte de uma marcação sobre um tecido, que por sua vez, possui uma estrutura pré-estabelecida, a relação trama-urdidura. Bordar é lidar com limites (formas) e o resultado possui seu lado visível e organizado, enquanto o verso não possui a mesma ordem. Já o espaço liso poderia ser exemplificado pelo feltro ou pelo patchwork. Em ambos, não sabemos o começo com tanta nitidez. O feltro é o compensado de fios e fibras de diversas naturezas; ele é lido do mesmo modo em seu avesso e em seu direito. Não há uma trama em sua “estrutura”, mas um emaranhamento, em que não conseguimos acompanhar o trajeto de uma fibra. Ela se perde, retorna, volta a sumir. E no patchwork, os retalhos se reúnem em sua heterogeneidade: vários tipos de tecidos, texturas, cores e tamanhos são justapostos sem projeto. Retalhos podem ser mudados de posição, recombinados, ou seja, fragmentos nômades sempre em mutação.
Em nossa realidade, a grande maioria dos lugares para exposição são adaptações de construções concebidas para outros fins. As adaptações arquiteturais deixam visíveis diversos signos que ora apontam para trás, ora dialetizam com o conjunto de obras ali exposto. Podemos pensar nestes espaços adaptados e não neutros como “lugares de memória” (Pierre Nora, 1993), pois são lugares físicos importantes simbolicamente para uma determinada sociedade, ativando sua memória coletiva. Monumentos e edifícios históricos tornam-se lugares de memória por impedirem a dispersão de traços, materiais e informações do passado e aqui eu posso pensá-los como potenciais espaços estriados. Cada exposição ou instalação que o espaço estriado abriga é nômade, permanece ali por determinado tempo, tornando o fato artístico uma combinatória entre o liso e o estriado.
A soma entre composição e exposição
Já o espaço expositivo possui camadas de espaço estriado em sua estrutura física, funcional e histórica; além de tornar-se liso pelas exposições que recebe, pode tornar-se ainda mais liso quando pensamos em uma montagem de exposição ou instalação cuja visualidade/materialidade é literalmente construída ali. O espaço expositivo transforma-se em ateliê. Em um texto publicado há mais de 10 anos, e em outro, ainda no prelo, discuto a galeria como soma do espaço compositivo (o espaço do fazer da obra) com o espaço expositivo (o da visibilidade da obra). Isto porque muitos dos objetos são finalizados e reposicionados no momento mesmo da montagem.
O ateliê, com relação à galeria, é um espaço liso. Ele é um reservatório de experimentações em curso, interpenetração de tempos distintos, trabalhos interrompidos; há uma enorme entropia em um ateliê. Expor em uma galeria é organizar obras que estavam no ateliê a partir de determinados critérios. A exposição faz distanciar o que não está pronto do que está finalizado, permite o trabalho cognitivo que se faz diante daquela seleção. No entanto, a arte contemporânea cada vez mais promove a interpenetração do ateliê no interior do espaço expositivo, mesclando tempos, diluindo fronteiras entre a composição e a exposição. Uma interpenetração do espaço liso em outro espaço menos liso, ambos ancorados em um espaço estriado, a galeria, museu ou centro cultural.
Isto ficou muito claro na montagem de Nuvem na Galeria. Embora houvesse um plano de composição já estipulado, foram montados trabalhos in loco, experimentadas novas posições e sequência, ensaios de convivência e avizinhamentos. Foram criadas trajetórias relativamente sutis para a percepção do espectador. O conjunto nos permitiu aproximar corpos cadentes, em mergulho e em convulsão no chão. A mão enclausurada dirigia-se ao vazio querendo tocar, virtualmente, um livro ou um rolo de madeira. Outras mãos sustentando o fazer de um tecido; mãos invisíveis equalizaram caminho, costura e desenho.
A presentidade do espaço compositivo expôs problemas e descobertas, potências reveladas e outras, guardadas para o depois. Em quatro dias, a montagem se tornou visível apenas pouco tempo antes da abertura da exposição. A visibilidade pública deu lugar, certo tempo depois, ao retorno do espaço compositivo na função de organizar o vazio e o silêncio. Tal como nuvem, uma soma de experiências reiniciou o seu trânsito, para outro lugar, de onde tudo saiu.