Aranha da Noite, 1940. Salvador Dali
Aranha da Noite, 1940. Salvador Dali

Qualquer semelhança, não é mera coincidência” …

Síndrome, vem do grego syndromē, é composta por syn-junto e dromos-corrida, cujo sentido tem a ver com junção ou confluência. No contexto da medicina se refere a um conjunto de sintomas ou sinais que caracterizam uma condição clínica caracterizada pela reunião de vários indicadores ligados a mais de uma causa, portanto, não se refere a algo em particular, mas a um conjunto de manifestações que podem ter origens diversas. Fora da área da saúde pode se referir a situações de indistinção que eventualmente surgem nos debates acadêmicos, por exemplo.

Bem, quanto ao liquidificador, esse eletrodoméstico multiuso entrou como metáfora numa das bancas de conclusão de curso da qual participei recentemente e serviu para exemplificar a geração de imagens, por meio da I.A. recorrendo ao processo de como se faz uma vitamina, ou seja, ao colocar num liquidificador frutas distintas como abacate, banana, maçã etc. o processador as transforma em algo indistinto. A partir daí não se percebe mais as qualidades e identidade de uma ou outra.

Esse amalgamento acaba gerando algo diferente de todas, mesmo que ainda mantenha o “DNA” de cada uma, isto representa o que estou chamando de “síndrome” e que sustenta as chamadas inteligências generativas: um mix de dados coletados em rede que, supostamente, passa a ser entendido como algo “novo”.

Quando se refere à Inteligência Artificial é possível perceber o surgimento de vários “sintomas” que revelam reações emocionais e sociais estimulados pelo avanço acelerado dos processos que a sustentam e promovem colocando em xeque a capacidade humana de absorver, adaptar e conviver com esse processo num período tão curto de tempo.

Um dele é um tipo de “Encantamento”, decorrente do fascínio que tal tecnologia apresenta. Em oposição ao encantamento há o temor de que os processos algorítmicos comprometam as atividades humanas, funções, atividades e o mercado de trabalho.

Receio de apropriação de dados pessoais e de propriedade autoral, ausência de respeito ético sobre a produção humana. Supressão do humano em benefício de robôs, máquinas e aparelhos capazes de substituir atividades ou tarefas humanas, distanciamento dos valores humanos e humanísticos. Imposição e domínio tecnológico sobre comunidades não tecnológicas. Dificuldade de acesso aos sistemas e infraestruturas tecnológicas provocando desigualdade e discriminação. Enfim, tais percepções geram instabilidade.

Por outro lado, impera a facilidade e disponibilidade para o uso de processos generativos que dependem apenas de prompts ou comandos verbais descritivos para gerar quaisquer produtos. Digo “quaisquer produtos” por considerar que isso ocorre tanto no contexto das imagens, quanto da música, da literatura e do audiovisual cujas apropriações recorrem aos streamings e os replica sem qualquer pudor.

As obras utilizadas para introduzir essa crônica são: “Aranha da Noite”, de 1940, de Salvador Dali e um recorte de fragmento de vídeo retirado de “Salvador Dali Planet by GEN 2”, gerado totalmente por I.A. tomando por base a o conjunto da Obra de Salvador Dali. A semelhança entre as obras do artista e o percurso narrativo do vídeo não deixa dúvida de que o processo opera por meio da famigerada apropriação de imagens. O vídeo é, em síntese, uma “fantasia daliniana”.

Fragmento de Vídeo. Salvador Dali Planet by GEN 2.


https://www.youtube.com/watch?v=CtaCMDmPNoc

Seu criador esclarece o processo: “En este video os presento una obra de arte única, creada por la IA de GEN 2. Se trata de un video que muestra un planeta surrealista, inspirado en el arte de Salvador Dalí, el pintor español que revolucionó el mundo del arte con sus imágenes oníricas y fantásticas. La IA de GEN 2 ha utilizado la técnica de video para generar un paisaje lleno de detalles y sorpresas, donde podéis ver las famosas creaciones de Dalí, como los relojes blandos, los elefantes con patas largas o las hormigas devorando objetos. Además, la música del video está generada a partir de una imagen de Dalí, utilizando la técnica de imagen a música. El resultado es una experiencia audiovisual que os transportará al universo daliniano”.  Usando el programa de GEN 2 de runway (https://app.runwayml.com).

Ao contrário do que se pode dizer do uso de recursos técnicos para a criação de Obras de Arte, comumente atribuídos ao uso de instrumentos, ferramentas e aparelhos, neste caso não é uma “ferramenta” passível de ser manipulada pelo autor para a criação de uma Obra de Arte, mas de um sistema computacional que opera por meio de extratores de dados visuais identificando constantes como detalhes, formas, cores, aparência e os transformando em dados. Posteriormente os utiliza para simular ou criar algo a partir disso. Se trata de um mecanismo de síntese e não de criação. A I.A. usa modelos generativos, que aprenderam os padrões visuais a partir de grandes conjuntos de dados e os condensa.

Os principais modelos são: GANs (Redes Adversariais Generativas): duas redes competem — uma gera imagens e a outra tenta distinguir se são reais ou falsas; VAEs (Autoencoders Variacionais): comprimem e reconstroem imagens, gerando variações criativas e Modelos de Difusão: começam com ruído aleatório e refinam progressivamente até formar uma imagem clara. São os mais usados hoje em ferramentas como DALL·E e Stable Diffusion.

Como se percebe, não se trata mais de criação, mas de apropriação, simulação e imitação. Embora não possam ser caracterizadas como cópias, só existem por recorrer a dados obtidos do universo de imagens disponíveis em rede e os reorganiza para gera-las. A partir daí surgem implicações relativas ao Direito Autoral e à ética. Uma constatação óbvia é que tais imagens não são autorais, pois o conceito de autoria se refere a pessoa física que cria obras artísticas ou científicas.

O vínculo entre o criador e sua criação é um direito moral/autoral, nesse sentido, não pode ser transferido nem vendido. Contudo, o direito patrimonial pode ser transferido por meio da venda, licença ou contrato de edição que envolva exploração econômica da obra, portanto, a titularidade pode ser transferida, mas a autoria não.

A questão que motivou esse texto é o fato de que os processos de apropriação e geração de produtos digitais, quer sejam imagens, textos, músicas, audiovisuais ou quaisquer produtos chamados generativos, não cumprem requisitos morais ou autorais, logo, não garantem autoria ou propriedade do que foi produzido por meio de sistemas artificiais generativos. Tal questão é agravada pelo fato de não haver regulação clara e adequada para enfrentamento dos desafios decorrentes da chamada Inteligência Artificial, ao que parece, esse ainda é um território de ninguém…

Isaac Antônio Camargo

Colunista

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.