"Pão fatiado"(Golden Hour), 2025. Kathleen Ryan, Galeria Gagosian. Fotos: Maris Hutchinson
"Pão fatiado"(Golden Hour), 2025. Kathleen Ryan, Galeria Gagosian. Fotos: Maris Hutchinson

À primeira vista uma das obras de Kathleen Ryan, apresentadas por uma das Galerias mais influentes no mercado atual, a Gagosian: uma fatia de pão mofado em pleno “estado de degradação”, ao que parece um grande salto no contexto das galerias comerciais de caráter neoliberal capitalista.

Será que a curadoria teria compreendido, enfim, uma das missões da Arte de debater, discutir ou refletir a respeito das distopias, diferenças, divergências ideológicas e o distanciamento econômico entre as classes sociais? Será que pretende mostrar, por meio do processo de degradação natural das coisas, que a Arte, enquanto recurso simbólico ou metafórico, como recurso para instaurar um diálogo com a degradação do humanitarismo no mundo atual?

Ledo engano… uma segunda vista desnuda o processo/procedimento que define a obra: uma peça de grande porte que imita uma fatia mofada de “pão de forma” industrializado com colônias de fungos. Segundo o texto da mostra: “Nesta exposição, sua estreia individual na galeria, Ryan explora ideias de utilidade e excesso, luxo e repulsa, refletindo sobre o estado inerente de transformação perpétua da cultura, mantendo, ao mesmo tempo, um atraente senso de absurdo”. Uma frase que, além de não esclarecer, confunde quem lê.

O que se vê são, praticamente, objetos cenográficos, “Ryan reveste meticulosamente as superfícies de alimentos ampliados e em decomposição com uma abundância quase pictórica de pedras semipreciosas”… As peças, têm boa qualidade plástico/visuais considerando a apropriação e combinatória dos diferentes materiais usados na construção das peças. A produção delas é feita com alto esmero técnico e capacidade criativa produzindo impacto visual e presença física marcante.

Obviamente, são inofensivas para a saúde, contudo muito atraentes para a ornamentação, distinção e valorização de ambientes sofisticados. São objetos/joias criados e precificados para reforçar o requinte visual e atrair o abastado público consumidor deste tipo de manifestação. Estratégia semelhante a esta foi realizada por Damien Hirst, quando em 2007, cravejou um crânio humano com diamantes, transformando-o em uma joia altamente valiosa. Parece ser a tentativa recorrente de consolidar o “Toque de Midas”, rei da mitologia grega, que obteve o dom de transformar tudo o que tocava em ouro.

Nem tudo que se vê é o que parece

O detalhe do “pão mofado” mostrado acima revela uma mirídade de pedras semi-preciosas: ágata, labradorita, aventurina, argonita, jamesita, malaquita de cobre, citrino, calcita, zeólita, magnesita, amazonita, celestita, prehnita, turquesa, quartzo, riolita, cornalina, granada, jaspe, serpentina, opala rosa, rubi em zoisita, ametista, quartzo, âmbar, mármore, acrílico, pinos de aço, espuma de poliuretano, alumínio tudo isso disposto sobre um colchão king-size em arranjos eficiente e ilusionísticos.

Detalhe da obra. Foto: Maris Hutchinson

Esclareço que, não há aqui qualquer intenção de denegrir a posição da artista, tampouco condenar a conduta da galeria que a apresenta, especialmente, porque tanto uma quanto outra cumprem os protocolos do mercado de Arte como configurado na contemporaneidade, não pactuo da crítica revanchista, procuro realizá-la no contexto da mediação informativa e apreciativa.

As questões socio-econômicas da atualidade, são muito mais amplas e complexas do que caberiam numa abordagem crítica rápida como esta. Contudo não posso deixar de reivindicar uma análise por um viés mais conceitual ao recorrer a uma versão, estimulada pela visão do pão apodrecido como metáfora da falência do humanismo. O pão tomado como alimento do corpo sugere, na tradição místico/religiosa uma relação com o espírito, contudo a riqueza, requinte e grandiosidade que a obra apresenta, nega toda e qualquer ilusão de humildade e faz do pão apodrecido um objeto valor e distinção social que, neste caso, ao contrário de congregar pessoas, se torna um fator de afastamento.

Voltando a Midas, ele descobre que não conseguia comer, beber ou abraçar as pessoas que amava, o dom se revelava como uma maldição e o fez perder o encantamento da vida. Quem sabe esta obra não seja uma oportunidade para refletir sobre os caminhos que os sistemas socioeconômicos atuais estão trilhando. Pense nisso…

Isaac Antônio Camargo

Colunista

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.