Ser retratado. Não em fotografia, mas em desenhos, pela mão de um artista. Numa tarde de abril, caminhei em direção ao ateliê do meu amigo e colega professor da Ufes, Fernando Augusto, para viver esta experiência.
Leia também: Como se mata uma rua histórica do Centro de Vitória?
Bastão de carvão na mão, papeis fixados à parede, os olhos do desenhista, um virtuose, vão e vem, perscrutam, mapeando meus traços fisionômicos.
Em pouco mais de uma hora, as mãos ágeis de Fernando, em parceria com seu olhar, uma riscando a outra borrando manchas de carvão, fazem surgir no papel, uma, duas três imagens de mim.
É preciso ir além da superfície da face: captar esse algo que chamo de eu: essa a premissa do retrato.
A perenidade do momento: entre ver e ser visto
FA insiste, persiste, e minha camiseta preta, minha bermuda tornam-se manchas negras monumentais a construir e estruturar o desenho. Traços, manchas, linhas e lá estou, sentado, para sempre.
Agora, uma perna esguia prolonga um joelho maciço para desaguar num tênis apenas delineado, esboçado.
Decisões, indecisões, dúvidas, e o desenho – desenhos: a investida do artista se multiplica em várias versões – avança.
Barroco, o retrato quer transbordar o papel; Fernando acrescenta outras folhas, que se justapõem, superpõem, a prolongar a imagem, que, fugidia, parece querer adquirir vida própria, voar, escapar para o mundo – no entusiasmo, ele desenha as paredes!
Sentado num sofá, imóvel, como modelo, olho e sou visto. Vejo e aprendo também, participo: de um jeito de ser, de viver. Pleno, com arte. Como artista.
Reflito sobre o mistério dessa prática milenar, o retrato: a vida é volátil; em algumas décadas, se tanto, com a minha ausência, estes desenhos estarão por aí, quiçá por séculos, falando da minha existência, da dele, Fernando Augusto, e do momento deste encontro.
Três artistas, três amigos
Mais tarde, juntou-se a nós, outro colega e amigo, o Lincoln Dias, pintor também, professor como nós, e entre cafezinhos e cervejas, passamos a tarde conversando sobre arte, filmes e livros.
Três artistas: sem esquecer que estamos sobre os ombros de gigantes, lembrei-me dos encontros produtivos de Monet, Renoir e Sisley em tardes ensolaradas nas Batignolles, nos arredores de Paris, em que aqueles pintores impressionistas enquadravam o mesmo trecho de paisagem para realizar três pinturas diferentes, cada qual com a cara de seu autor, pondo em prática as ideias que discutiam nos cafés, à noite – ideias que revolucionariam a arte e a pintura.
O contexto é fundamental, o convívio entre pares: voltando para casa, ao contornar a Costa Pereira, com a alma leve e o coração alegre, me veio à mente o lema do qual, quarenta anos atrás, vinte antes de cruzar minha linha da vida com as de Lincoln e Fernando, eu e outros alunos e alunas da Escola de Belas Artes tanto nos orgulhávamos, na perspectiva de liberdade que aquele momento anunciava em seu otimismo: “enquanto arte vida, enquanto vida arte”.