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'Capesius' mostra trajetória de um nazista que não hesitou ao matar amigos

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São Paulo – É extremamente penoso chegar ao final de Capesius – O Farmacêutico de Auschwitz. O livro, do escritor alemão Dieter Schlesak, empilha palavras como cadáveres mutilados e vilipendiados para tentar descrever o horror dos campos de extermínio. Na já vasta bibliografia sobre esse momento único da barbárie nazista, esta obra certamente terá um lugar entre as mais controversas e reveladoras. Não é possível atravessá-la sem enfrentar a incômoda sensação de que a assim chamada “humanidade” – nome que se dá à comunidade dos homens, que devem encontrar maneiras de conviver uns com os outros a despeito de suas diferenças – é uma completa impossibilidade.

Um dos aspectos que tornam Capesius notável é o fato de retratar o comportamento de um zé-ninguém para explicar o empreendimento genocida dos nazistas. Antes da guerra, Victor Capesius era farmacêutico e representante comercial da Bayer em Schässburg, na Transilvânia. Com esse currículo insignificante, incorporou-se à SS e foi designado para administrar a “farmácia” de Auschwitz, mais um dos tantos eufemismos nazistas – pois essa “farmácia”, além de estocar medicamentos, era responsável por gerenciar o uso do Zyklon-B, o gás que matou milhões de prisioneiros nos campos de extermínio. Pode-se dizer que, se Capesius não tivesse existido ou mesmo se tivesse se recusado a cumprir seu papel, outro qualquer teria feito o trabalho em Auschwitz, pois não se exigia dele nenhuma habilidade excepcional – apenas a total disposição para se desincumbir de suas tarefas da melhor maneira possível, como se espera de um bom burocrata.

O livro reconstitui a trajetória de Capesius por meio dos registros do julgamento a que o farmacêutico e outros acusados de crimes em Auschwitz foram submetidos, em 1963, em Frankfurt. É uma colagem de relatos de testemunhas, sem uma ordem aparente, mas cujo efeito é devastador: a frieza da narrativa judicial, tal como consta nos autos do processo, descreve sem emoção aparente, palavra por palavra, a quase monótona rotina de crueldade inaudita contra homens, mulheres e crianças absolutamente inocentes. O autor cria um único personagem fictício, o judeu Adam Salmen, para servir como seu porta-voz. É ele quem faz os questionamentos morais que estão na essência do problema nazista: a culpa, tal como a conhecemos, parecia não se aplicar aos perpetradores do Holocausto.

Esse recurso do autor, no entanto, era desnecessário. O próprio Capesius é a prova da falência moral dos alemães e de seus cúmplices no genocídio. Pois o farmacêutico, com o pequeno poder de que dispunha, ajudou a matar, sem pestanejar, vários judeus que ele conhecia pessoalmente e que não eram seus inimigos. Ao contrário: eram fregueses, vizinhos e amigos.

“O fato absolutamente único, inédito e monstruoso dessa situação para Capesius era que ele não estava lidando com uma massa anônima, mas sim tinha à sua frente, de súbito, pessoas que já conhecia de longa data, por amizade pessoal ou por contato profissional”, disse o promotor no julgamento, sem esconder sua estupefação. “Eram familiares de seus antigos amigos e de conhecidos do trabalho, mulheres e crianças (…).” As testemunhas informaram que Capesius era “excepcionalmente gentil” com suas vítimas, para enganá-las sobre seu destino e se apoderar de seus parcos bens.

Em sua defesa, Capesius afirmou que as testemunhas faziam parte de um “complô comunista” para prejudicá-lo, alegou que fez apenas o que tinha de ser feito e declarou que não se sentia culpado de nada. “Peço-lhe que me absolva”, disse ao juiz, absolutamente convicto de que não havia cometido crime nenhum. Capesius foi sentenciado a meros nove anos de prisão. Cumpriu apenas três. Morreu tranquilamente, de causas naturais, em 1985, aos 78 anos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.