Entrevista Arte+

Entre o ritual e a performance, as lições da matéria na obra da artista Naira Pennachi

A colunista Flavia Dalla Bernardina entrevista a artista Naira Penachi, com exposição "Lições da Pedra", em cartaz no FAMA Museu, em Itu-SP

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Imagem da exposição Lições de Pedra, FAMA Museu, Itu, SP. Créditos da artista.
Imagem da exposição Lições de Pedra, FAMA Museu, Itu, SP. Créditos da artista.

Abrindo o quadro de entrevistas escritas no Arte+, conversamos com a artista Naira Pennachi, mineira, que atualmente reside entre Ribeirão Preto e Lisboa e está com a exposição “Lições de Pedra”, com curadoriaa de Mario Gioia, em cartaz no FAMA Museu, em Itu – SP.

Na mostra, a artista apresenta mais de 30 trabalhos entre pinturas, instalações, trabalhos audiovisuais, desenhos e obras sonoras. Nesta entrevista falamos um pouco sobre a concepção desta exposição, o trabalho no ateliê e o diálogo com os materiais.

1. Sua exposição no FAMA apresenta um recorte muito particular do seu trabalho. Como foi o processo de concepção desta mostra e de que forma ela dialoga com a sua trajetória até aqui?

Todo o percurso artístico realizado até o momento é fundamental para o meu desenvolvimento e para a construção da minha identidade profissional. Nesse trajeto, tenho buscado estabelecer uma conexão mais profunda com minha produção, que surge por diferentes mídias e cujos materiais vão, muitas vezes, se conectando.

Algumas obras são resultados da prática de pintura no dia a dia do ateliê, outras de experiências performáticas e vivências que impulsionam sua criação, enquanto as demais surgem de forma espontânea e já completas.

O título da mostra remete à literatura de João Cabral de Melo Neto, Educação pela Pedra, e ter o livro como material de apoio no momento funcionou como trilha sonora do material produzido. E, organizando tudo isso, tenho a concepção idealizada para a mostra, uma itinerância que teve início na Pinacoteca de Botucatu,  agora encontra-se no museu FAMA, e no final do ano estará em Ribeirão Preto.

Lições da Pedra exibe um conjunto de obras que dialogam surpreendentemente com o espaço expositivo do Museu FAMA, bordados, vídeos, pinturas, instalações e obras sonoras. Foi muito importante ver estes trabalhos juntos, criando conexões, desdobrando possibilidades, possibilitando trocas, ensinando crianças, treinando educativo, organizando oficinas e visitas guiadas.

2. Muitos artistas desenvolvem rituais ou metodologias próprias no ateliê. Como se dá o seu processo criativo?

Não possuo uma rotina fixa para o desenvolvimento do meu processo criativo. Esse processo está intrinsecamente ligado ao meu temperamento, aos meus pensamentos e à minha forma intuitiva de criar soluções para cada trabalho. Tenho a liberdade de produzir em diferentes lugares além do ateliê, pois preciso estar onde estou para dar continuidade à minha narrativa artística, utilizando recortes e cores.

Busco me isolar em locais do interior de Minas Gerais e São Paulo, na zona rural, passar dias em rios ou no povoado de São Braz do Piauí, onde ainda prevalece a vida comunitária, os saberes populares, benzedeiras, raizeiras e festividades religiosas. Essas experiências remetem bastante à minha infância em Jacutinga, e reviver estas coisas que me interessam funcionam como gatilhos de produção.

Essas vivências externas ao ateliê são tão importantes quanto aquelas que ocorrem no espaço de trabalho no qual, de forma mais técnica, possibilitam que as ideias, os resgates sonoros e as imagens se transformem em arte.

3. Gostaria que você comentasse sobre os materiais que utiliza. O que te leva a escolher determinado suporte e como esses elementos contribuem para a narrativa do seu trabalho?

O que realmente me interessa dos materiais é sua própria materialidade e o que ela pode me fornecer. Durante a produção artística eles são combinados por meio das soluções mais originais possíveis, arcaicas, tudo voltado para o vernacular e para suas concepções simples em fazer, colorir, pintar, bordar ou compor.

4. A exposição traz obras que parecem carregar camadas de memória e subjetividade. Quais são as referências ou experiências que mais atravessam a sua produção recente?

Realmente, é um acúmulo de histórias e, aqui, algumas são recontadas: eu tive o privilégio de transformá-las em arte e pesquisa. Acredito que minha produção tece este resgate pela cultura imaterial, pela cultura local, por trabalhar a terra ali através do meu corpo-território.

Através de referências que atravessaram minha vida, sendo muitas delas relacionadas às atividades praticadas pelas mulheres da minha família como a malharia, o tricot, o bordado.

Crescer neste ambiente me possibilitou criar peças como a treliça, um biombo bordado com fios de lã por bordadeiras de Jacutinga, onde o bordado entrelaça uma tela de galinheiro de arame quadriculado. Nesta superfície inusitada, seu trabalho dá continuidade às práticas da família.

5. Como você percebe o encontro da sua obra com o espaço expositivo do FAMA? Houve uma preocupação em criar diálogos específicos com a arquitetura e a atmosfera do lugar?

A gente sempre espera um cubo branco para um espaço expositivo, mas não é o que acontece, ainda mais em uma instituição. Realmente este espaço foi especial e me possibilitou visões diferentes do meu próprio trabalho. 

No museu FAMA o diálogo criou-se naturalmente e foi percebido por todos os espectadores, parece que o que estava se contando lá dentro, no espaço expositivo, de certa forma também acontecia lá fora.

Por exemplo: a relação entre a instalação Pedra flor, uma obra instalativa com 50 rochões de basalto, mais hastes/caules de arame e um antúrio de plástico vermelho na ponta, e os paralelepípedos de quartzo-rosa existentes no jardim do museu, que encontrava-se repleto do mesmo material, pedras e mais pedras, em cores e formatos diferentes, é algo que nos toca como artistas e tenho certeza que ao público também.

A exposição foi abraçada pelo Museu FAMA, que contribuiu para ampliar as discussões ali propostas, e fazer muitas relações com outras artistas que também fazem parte do acervo do museu, como Tarsila do Amaral, na sua pesquisa das cores e do olhar para esse interior do país também.

6. E olhando para frente, quais são as questões que você sente que continuam a te mobilizar e que devem orientar os próximos desdobramentos do seu trabalho?

Acho que a exposição veio como a resposta de uma busca que vinha acontecendo há algum tempo. Foi como se ela tivesse me mostrado que existem muitos caminhos possíveis, através da exploração de diversos materiais, técnicas, e que todos apontam para um mesmo destino, um sentido que eu estava procurando.

Essa abertura de possibilidades me trouxe não só novas ideias, mas também confiança no meu processo. É muito especial perceber que cada trabalho pode desdobrar em outros e que a pesquisa não se fecha, ela se expande. Isso me deixa animada para o que ainda está por vir.

Flávia Dalla Bernardina

Colunista

Advogada em Propriedade Intelectual. Mestre em Artes Visuais pela UFES. Curadora de arte. Diretora Artística na Galeria Matias Brotas. Membro da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/ES e da OAB Federal. Idealizadora do podcast Conversa com Artista. Pesquisadora das relações entre direito e arte, sobretudo no que tange à autoria.

Advogada em Propriedade Intelectual. Mestre em Artes Visuais pela UFES. Curadora de arte. Diretora Artística na Galeria Matias Brotas. Membro da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/ES e da OAB Federal. Idealizadora do podcast Conversa com Artista. Pesquisadora das relações entre direito e arte, sobretudo no que tange à autoria.