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Exposição no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas

Exposição no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas Exposição no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas Exposição no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas Exposição no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas

São Paulo – Se o corpo ocupa lugar de destaque na cosmologia indígena, a alma é inconstante, como sugere a leitura dos livros do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Isso justifica a busca incessante de afinidades eletivas entre eles, uma vez que os laços biológicos não têm para as populações indígenas o mesmo valor que o sangue familiar para os caucasianos “civilizados”. Foi mais ou menos a ideia de que é preciso “construir” um corpo que levou os curadores Eduardo Sterzi e Veronica Stigger a organizar a exposição Variações do Corpo Selvagem como um percurso que vai do registro dessa construção corporal à destruição ecocida que avança sobre a Amazônia.

As últimas imagens da exposição são apocalípticas. A Amazônia invadida pelos colonos brancos, as queimadas, a construção de hidrelétricas, há de tudo um pouco nesse segmento final, retrato amargo de um país que renegou um modelo de civilização que considera atrasada, primitiva. Também por isso, a exposição de fotos de Viveiros de Castro tem um papel didático na formação das novas gerações, submetidas ao discurso desenvolvimentista do Brasil grande, mesmo que seja à custa do sacrifício indígena. Viveiros de Castro, aliás, lançou no ano passado, em colaboração com Deborah Danowski, um livro assustador sobre o apocalipse, Há Mundo por Vir? (Cultura e Barbárie em coedição com Instituto Socioambiental, R$ 35).

A escritora Veronica Stigger deve lançar ainda este ano um livro baseado na teoria etnológica de Viveiros de Castro, sua interpretação pessoal dirigida às crianças sobre o perspectivismo ameríndio. Em linhas gerais, o que Veronica vai tentar explicar é que o índio não existe no singular, mas no plural. “Todos somos índios no Brasil, exceto quem não é”, costuma dizer o antropólogo. No livro infantil Onde a Onça Bebe Água, que será lançado pela editora Cosac Naify e marca sua primeira colaboração com Viveiros de Castro, Stigger ensina que uma onça – apenas uma besta para o homem branco – se encontra em outra dimensão na cultura indígena, podendo assumir uma perspectiva humana – a onça não se vê como onça, segundo algumas etnias, mas como gente, que come tapires (índios), suas presas. Para a lógica indígena, o mundo se divide entre caçadores e caça.

A entrada das fotos dos filmes de Ivan Cardoso na mostra, associadas às imagens registradas por Viveiros de Castro em tribos como os kulinas e os arawetés, tem um pouco esse viés canibal, uma cultura se alimentando da outra para sobreviver, como defendia o modernista Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago (1928). Cardoso deglutia os filmes de terror americanos e escancarava nossa precariedade associada à estética da fome vampiresca. Mortos-vivos no país da cobra grande. Há fotos engraçadíssimas do antropólogo, entre elas o de uma múmia de ray-ban (do filme O Segredo da Múmia, de 1981).

A amizade entre os dois é antiga. Na adolescência, o antropólogo, filho da próspera classe média carioca, morava na Gávea e conheceu uma turma maluca que fazia filmes experimentais em super 8, defumando a casa com a chamada erva maldita, como o fazia Hélio Oiticica, que frequentava tanto a elite do Museu de Arte Moderna como marginais da favela. Ivan Cardoso, também amigo de Oiticica, era o demolidor da construção formal. O poeta concreto Haroldo de Campos, inclusive, chamava essas suas intervenções fílmicas de “Mondrian no açougue”, dando a entender que a ordem ortogonal do pintor holandês era sacudida pela desordem tropicalista de Cardoso.

Já Oiticica era uma espécie de xamã da turma, um ser com capacidade de chamar espíritos para a luta contra a repressão, imposta aos artistas durante a ditadura. Suas intervenções, após o abandono do construtivismo, do qual foi um dos representantes, significou o nascimento de movimentos culturais importantes como a Tropicália, cujo nome Caetano e Gil tomaram emprestado de uma instalação sua de mesmo nome, de 1967.

Há algo de tropicalista nas roupas que os índios usam em algumas fotos registradas por Viveiros de Castro. O curador Eduardo Sterzi chama a atenção para a de um índio com duas bolas de gás penduradas na cintura, dançando. As fotos não têm legendas, mas o conceito de cada parede está expresso em frases paródicas sobre o trabalho como a “essência” do homem, mostrando como o ócio criador é muito mais importante para os índios. Se existe uma lição que eles ensinaram ao homem branco, segundo o antropólogo, é que podemos viver melhor num mundo pior, dominado pela ânsia de consumo e de ser consumido, baseado na obsolescência programada. Um antídoto para esse veneno está no Sesc Ipiranga. É só tomar. E é grátis. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.