O cineasta Guillermo Del Toro, eterno amante dos monstros, finalmente realizou um de seus sonhos mais antigos: revisitar “Frankenstein”, o romance imortal de Mary Shelley que, há mais de dois séculos, ecoa como uma fábula sobre o limite entre a criação e a destruição.

Em vez de reproduzir o horror científico já explorado em inúmeras adaptações, Del Toro opta por algo mais ousado: reconstruir o mito como uma confissão de humanidade. Sua versão estilizada é um filme sobre a dor de existir, o desejo de ser amado e o abismo que separa o criador de sua criação.

Beleza e maldição

Desde o primeiro quadro, é possível reconhecer a assinatura inconfundível do cineasta. Del Toro é um verdadeiro arquiteto do sublime, e cada plano parece meticulosamente esculpido com o mesmo cuidado de Victor Frankenstein diante de seu experimento.

A fotografia atua como espelho emocional dos personagens, alternando entre o frio da obsessão científica e o calor trágico do sentimento humano. Os cenários góticos, as luzes e sombras milimetricamente calculadas e os tons vibrantes de vermelho e verde revelam a estética maximalista que tornou o cineasta inconfundível.

Os figurinos acompanham essa linguagem visual quando percebemos que as peças transitam entre o luxo da alta-costura e o desgaste do tempo, ou seja, o guarda-roupa funciona como forma de refletir a transformação interior dos protagonistas conforme a história avança. Em especial, as roupas de Elizabeth que se destacam pela delicadeza dos véus translúcidos e pela simbologia de seus adornos.

A narrativa, por sua vez, começa com vigor. O prólogo promete um confronto moral arrebatador, mas o ritmo se perde no meio do caminho assim que começa o capítulo seguinte. Só quando a Criatura assume os holofotes próximo ao desfecho que o filme recupera sua força, conduzindo a trama a uma conclusão de tom confessional e melancólico.

A alma do monstro

Apesar do elenco estrelar, Jacob Elordi é quem brilha como a Criatura (Foto: Reprodução/X/@netflix)

A Criatura, interpretada com espantosa profundidade por Jacob Elordi, é o verdadeiro coração e, ironicamente, o personagem mais “vivo” da história. Sob a maquiagem pesada e a postura torta, há um olhar que combina inocência e desespero. O ator encarna uma sensibilidade inédita, sendo praticamente um símbolo de pureza incompreendida, uma voz que parece implorar por um lugar no mundo.

Oscar Isaac, por outro lado, entrega um Victor Frankenstein que parece carregar o peso da culpa e da previsibilidade. É um acerto mostrar o desespero do cientista que brinca de Deus, mas sua performance, por vezes, resvala no exagero. Falta aquele brilho de genialidade corrompida que tornava o personagem de Shelley tão ambíguo e fascinante.

Mia Goth, sempre magnética, interpreta tanto Elizabeth quanto a mãe de Victor, uma escolha que adiciona um toque freudiano à obra, mas esse subtexto acaba pouco explorado. Seu desenvolvimento como interesse romântico de Victor, assim como sua relação com a Criatura, também poderia ser melhor aproveitado, mas isso não ocorre.

Já o personagem de Christopher Waltz surge como uma presença quase ornamental. Seu talento é desperdiçado em um papel sem peso dramático, pouco acrescentando à alma do filme, sendo uma espécie de coadjuvante de luxo onde a importância está apenas por ser interpretado por quem é.

Entre criação e criador

Ainda que repleto de virtudes visuais e conceituais, o filme carrega um paradoxo que o acompanha como uma sombra. O amor do cineasta por seus monstros é tão profundo que o impede de deixá-las se corromper. Sua compaixão, embora poética, enfraquece o atrito moral que a história exige. Victor Frankenstein é retratado como vilão absoluto, e a Criatura, como mártir inocente.

A produção mais visualmente bela sobre o monstro de inocência trágica (Foto: Reprodução/X/@FrankensteinGDT)

O embate entre criador e criação, que deveria pulsar em tensão e dúvida, termina sendo um um confronto simbólico entre o bem e o mal. O diretor cria uma obra de beleza tão milimétrica e emocionalmente controlada que ela parece jamais alcançar o caos que caracteriza as grandes tragédias. O desfecho, por mais sensível que seja, carece da brutalidade emocional da conclusão concebida por Mary Shelley.

Mesmo assim, há momentos em que o filme toca o sublime com uma rara delicadeza. A cena em que a Criatura encara o próprio reflexo e reconhece a coexistência entre o horror e a beleza é um instante de pura transcendência. Da mesma forma, o episódio com o homem cego e sua família devolve à narrativa um fôlego moral e uma reflexão sobre a violência que persiste em nosso mundo.

O “Frankenstein” de Guilhermo Del Toro reafirma que todo monstro é, no fundo, alguém tentando ser amado. Um espetáculo visual inegável, que mesmo faltando uma centelha que o tornaria uma obra-prima definitiva, ainda esbanja humanidade o bastante para mantê-lo vivo na memória, pulsando, falhando e, por isso mesmo, continua sendo algo autêntico.

Gabriel Miranda

Repórter

Jornalista em formação pela Estácio de Sá, faz parte da redação da TV Vitória e está à frente do quadro "Só Soundtrack Boa" na Jovem Pan Vitória. Com olhar atento e conhecimento de cinema e cultura pop, escreve sobre filmes, séries, bastidores e tudo que movimenta esse universo pop.

Jornalista em formação pela Estácio de Sá, faz parte da redação da TV Vitória e está à frente do quadro "Só Soundtrack Boa" na Jovem Pan Vitória. Com olhar atento e conhecimento de cinema e cultura pop, escreve sobre filmes, séries, bastidores e tudo que movimenta esse universo pop.