Nosso cinema só vale se ganhar Oscar? (Foto: Reprodução/X/@globoplay)
Nosso cinema só vale se ganhar Oscar? (Foto: Reprodução/X/@globoplay)

O sucesso de “Ainda Estou Aqui” nas premiações internacionais foi recebido como uma conquista coletiva – não apenas para a equipe envolvida, mas para todo o cinema brasileiro. Produções faladas em português ocupando espaços de prestígio mundial não são comuns, e cada reconhecimento representa não apenas mérito artístico, mas também resistência a décadas de invisibilidade do cinema nacional.

Premiações em festivais internacionais, como Cannes ou Veneza, historicamente abriram portas para cineastas brasileiros, mas também expõem a dependência de reconhecimento externo como parâmetro de sucesso, algo que ressoa em todas as áreas culturais do país.

No entanto, o entusiasmo por essas conquistas rapidamente se mistura a um incômodo familiar: por que é preciso que algo seja reconhecido lá fora para ser valorizado aqui dentro? Por que o brasileiro insiste em duvidar da força de sua própria produção audiovisual? 

Uma desconfiança histórica

Nos anos 50, o jornalista Nelson Rodrigues cunhou o termo “complexo de vira-lata” ao perceber uma tendência do público e da crítica em subestimar as produções nacionais, aguardando sempre a chancela internacional para atribuir valor. No cinema, essa dinâmica se manifesta com maior clareza, tornando evidente que nossa autoestima cultural ainda depende de olhares externos.

O vira-latismo funciona como uma estrutura de pensamento que molda a forma como o Brasil consome e enxerga sua própria arte, visto que a preferência quase automática por produtos estrangeiros, em especial vindos de Hollywood, está associada à ideia de superioridade estética e tecnológica do cinema estadunidense. 

Consequentemente, obras brasileiras acabam por sofrer frequentemente com a desconfiança, mesmo quando possuem uma qualidade técnica e narrativa equivalente ou superior a obras estrangeiras.

Obras que, mesmo reconhecidas, ainda são menosprezadas (Foto: Reprodução/X/@globoplay/@canalbrasil)

Quando uma produção brasileira é elogiada em festivais, o público passa a enxergá-la de outra forma. Esse fenômeno foi observado em filmes como “Central do Brasil” ou “Cidade de Deus”, que receberam atenção global antes de se consolidarem no mercado interno. 

Essa dependência de validação externa tem raízes históricas profundas, já que a estética hollywoodiana acabou sendo associada a qualidade há anos, seja pelo modelo de produção, pelos recursos financeiros ou pelo marketing agressivo. Filmes brasileiros viam uma necessidade de se adaptar a um mercado que privilegiava histórias que se encaixassem nesses estereótipos. 

Mas o problema não se limita à percepção do público. O sistema de distribuição brasileiro reforça essa desigualdade, uma vez que vários títulos nacionais lutam para se manter nas programações das salas de cinema. Esse ciclo cria uma lógica onde o público não assiste porque não encontra, e os exibidores não exibem porque o público não consome, dificultando a consolidação de uma audiência consistente para obras nacionais.

Esse distanciamento entre produção e consumo revela uma ferida cultural, pois o público foi condicionado a se identificar com narrativas estrangeiras e, muitas vezes, estranha sua própria imagem na tela, em outras palavras, tendo a percepção de que histórias brasileiras são menos universais ou relevantes, limitando o debate sobre identidade cultural no país.

Estereótipos e preconceitos

Vale destacar que muita gente ainda associa o cinema brasileiro a produções de baixo orçamento ou a filmes que tratam apenas de violência. Frases como “só fazem filme de favela” são comuns e revelam mais sobre os preconceitos de quem as repete do que sobre a realidade de nossos roteiros.

De fato, obras de crítica social fazem parte da tradição nacional desde o movimento conhecido como “Cinema Novo”, mas reduzir toda a produção a esses temas ignora a pluralidade de gêneros, linguagens e abordagens existentes no país.

O cinema nacional cria grandes clássicos há décadas (Foto: Reprodução/Netflix/Globoplay)

Nesta época, o Brasil retratou suas contradições sociais, a vida nas periferias e a desigualdade. Filmes como “Rio, 40 Graus” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” foram pioneiros em trazer à tona a realidade das classes marginalizadas, mas também influenciaram uma geração inteira de cineastas que buscavam narrativas com profundidade social

O problema é que, com o tempo, esse recorte acabou virando um rótulo: o cinema brasileiro foi reduzido à representação da pobreza, da violência ou da vida em favelas, apagando a riqueza e a diversidade da produção nacional. O erro não está em contar essas histórias, afinal, elas são legítimas e importantes, mas em permitir que elas sejam vistas como a única forma de representar o país.

Há uma enorme variedade de obras de outros gêneros, desde comédias mais elaboradas, como “Bingo: O Rei das Manhãs” – que vai além do humor de apelo rápido e também funciona como uma cinebiografia -, até dramas emocionantes, como “Dois Filhos de Francisco”.

Enquanto o terror nacional encontra espaço em títulos como o capixaba “Prédio Vazio”, obras de ficção científica já foram feitas com elencos estelares, como “O Homem do Futuro”, protagonizado por Wagner Moura. Muitos desses filmes circulam em circuitos menores e, apesar dessa visibilidade restrita, são de excelente qualidade, mostrando o tamanho dessa pluralidade.

Entre barreiras e validação 
Histórias incríveis e diversas que merecem ser vistas e apreciadas (Foto: Reprodução/X/@canalbrasil)

Enquanto essa mentalidade persistir, a riqueza do cinema nacional continuará invisível, não por falta de qualidade, mas por uma estrutura simbólica que privilegia o externo em detrimento do interno. Portanto, o vira-latismo é perigoso para o mercado e para a identidade nacional, condicionando o público a reproduzir uma hierarquia injusta.

Apesar desses desafios, uma nova geração de cineastas, produtores e roteiristas vem desafiando o sistema. Eles buscam linguagens inovadoras e formas alternativas de distribuição, muitas vezes aproveitando plataformas de streaming e festivais para chegar a públicos antes inalcançáveis.

Talvez a maior lição de “Ainda Estou Aqui” e de outros filmes que romperam o silêncio não esteja nos prêmios em si, mas na lembrança de que a validação precisa vir de dentro. Somente quando o olhar brasileiro valorizar seus próprios filmes será possível consolidar uma cultura audiovisual capaz de representar a pluralidade do país e romper anos de negação daquilo que produzimos, e produzimos bem.

Gabriel Miranda

Repórter

Jornalista em formação pela Estácio de Sá, faz parte da redação da TV Vitória e está à frente do quadro "Só Soundtrack Boa" na Jovem Pan Vitória. Com olhar atento e conhecimento de cinema e cultura pop, escreve sobre filmes, séries, bastidores e tudo que movimenta esse universo pop.

Jornalista em formação pela Estácio de Sá, faz parte da redação da TV Vitória e está à frente do quadro "Só Soundtrack Boa" na Jovem Pan Vitória. Com olhar atento e conhecimento de cinema e cultura pop, escreve sobre filmes, séries, bastidores e tudo que movimenta esse universo pop.