Entretenimento e Cultura

Kershaw, principal historiador do nazismo, fala sobre 'De Volta do Inferno'

Kershaw, principal historiador do nazismo, fala sobre ‘De Volta do Inferno’ Kershaw, principal historiador do nazismo, fala sobre ‘De Volta do Inferno’ Kershaw, principal historiador do nazismo, fala sobre ‘De Volta do Inferno’ Kershaw, principal historiador do nazismo, fala sobre ‘De Volta do Inferno’

– Ian Kershaw é hoje o principal historiador do nazismo, conhecido especialmente por sua monumental biografia de Hitler, já publicada no Brasil em versão abreviada, e também por vários outros títulos essenciais para entender como a Alemanha sucumbiu a Adolf Hitler – e, com ela, o mundo civilizado. Ele agora se dedica a escrever a história da Europa no século 20, período em que se desenrolou esse terrível processo de destruição, cujas marcas ainda estão visíveis em toda parte, embora o nazismo em si, para muitos, pareça algo já distante no tempo.

Saiu no Brasil o primeiro dos dois volumes desse trabalho, De Volta do Inferno (Companhia das Letras), livro que trata especialmente do processo de destruição dos pilares sobre os quais se assentava a ordem mundial, com a inauguração de uma era de violência absoluta.

Kershaw, em entrevista, comenta alguns possíveis paralelos do momento atual – especialmente depois da vitória do populista Donald Trump na eleição à presidência dos Estados Unidos – com o processo que precedeu a chegada ao poder de partidos e líderes autoritários na Europa dos anos 20 e 30. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Em seu livro, o sr. descreve as condições objetivas que permitiram o surgimento de regimes autoritários e totalitários na Europa nos anos 30. Entre essas condições, o sr. destaca o desencanto com a democracia liberal e a desmoralização da política tradicional. O sr. acredita que o momento atual, especialmente com o sucesso de Donald Trump nos Estados Unidos e a força da xenofobia na Europa, se assemelha de alguma forma a esse cenário?

Certamente há, hoje, algumas características muito perturbadoras da política em democracias há muito estabelecidas. A raiva no establishment político, e os partidos que a sustentam, produziram polarização, um enfraquecimento dos partidos moderados conservadores, liberais e social-democratas e um fortalecimento de partidos mais extremos, às vezes da esquerda, mas mais usualmente nacionalistas e xenófobos. Isso abre o caminho para movimentos em direção ao autoritarismo. Na Europa, a ameaça à democracia liberal prevalece mais em algumas partes da Europa Central e Oriental, onde a crise dos refugiados tem exacerbado o sentimento de ameaça à identidade nacional. Na Europa Ocidental, a suposição mais provável é que a democracia liberal não dará lugar ao autoritarismo, mas que a crescente intolerância e xenofobia terá, no entanto, um impacto sobre a política dos principais partidos. Isso será muito fortalecido agora que Trump ganhou a presidência nos EUA.

O sr. atribui a deflagração da Segunda Guerra Mundial ao nacionalismo étnico, às demandas territoriais alemãs e francesas, à ameaça socialista e à Crise de 1929. O sr. diria que Hitler é o produto de uma situação em que a guerra era de todo modo inevitável? Ou o sr. acredita que, mesmo nessas circunstâncias, a guerra poderia ter sido evitada se Hitler não tivesse chegado ao poder?

Hitler foi de fato um produto das circunstâncias drasticamente alteradas que se seguiram à Primeira Guerra Mundial. Sem essa guerra é impensável que Hitler pudesse ter-se tornado chanceler da Alemanha. O resultado da Primeira Guerra Mundial fez com que a ocorrência de outra guerra se tornasse muito mais provável. Mas os desenvolvimentos da segunda metade da década de 1920 mantiveram alguma esperança de evitar grandes conflitos, até que a Europa foi atingida pela Grande Depressão que se seguiu à quebra de Wall Street. Uma vez que Hitler tinha chegado ao poder na Alemanha durante a crise da Depressão, as chances de evitar uma outra grande guerra rapidamente diminuíram e logo chegaram a zero.

O sr. escreve que o principal beneficiário da crise capitalista de 1929 foi a extrema direita, e não a esquerda, como poderíamos imaginar. Por que isso aconteceu?

A esquerda estava dividida em quase toda parte entre comunistas, que olhavam para Moscou e visavam à criação de uma “ditadura do proletariado”, e os social-democratas, geralmente o maior segmento da esquerda, que estavam dispostos a perseguir seus objetivos através da democracia parlamentar, objetivos esses que foram enormemente enfraquecidos quando o apoio à democracia entrou em colapso. A esquerda apelou essencialmente para um setor da sociedade, a classe trabalhadora industrial. Aqueles que possuíam bens, inclusive os agricultores, eram em grande parte alienados pela esquerda e especialmente temerosos do comunismo. E, num tempo de grande desordem e medo, a direita, que prometia o restabelecimento da ordem, a criação de uma sociedade baseada no interesse nacional e não setorial e o esmagamento daqueles que representavam a maior ameaça – os comunistas – obteve um amplo apoio.

Este é o primeiro volume de dois sobre a história da Europa contemporânea que o senhor está escrevendo. Na primeira metade, é claro o papel central da Alemanha. Na segundo, esse papel permanecerá?

É inegável que a Alemanha esteve no centro da história europeia ao longo do século 20, e ainda está lá. Ela desempenhou um papel importante na eclosão de duas guerras mundiais, foi o centro da Guerra Fria, foi o centro de eventos que trouxeram o fim da Guerra Fria, e tem sido mais recentemente o principal país na crise da zona do euro. Na primeira metade do século, as ambições da Alemanha de se tornar o poder dominante no continente europeu inevitavelmente levaram a grandes conflitos. Na segunda metade do século, as lições políticas da história da Alemanha foram plenamente aprendidas, mas a crescente força econômica, inevitavelmente, faz com que a Alemanha continue a ser o pivô da Europa.

Seu livro apresenta as vastas mudanças sociais que acompanharam as duas grandes guerras. A principal dessas mudanças parece ser a consolidação do homem-massa, um fenômeno em que o indivíduo perde completamente seu poder, diluído em partidos de massa, meios de comunicação de massa e guerras de destruição em massa. Poderíamos dizer que esse fenômeno mantém a própria ideia de civilização permanentemente em risco, como testemunhado na Europa do século 20?

De certa forma, a segunda metade do século 20 viu a diluição das estruturas coletivas e uma maior volta para o individualismo. Após a Segunda Guerra Mundial, os interesses coletivos da população, subsumidos nos principais partidos políticos e sindicatos, produziram mudanças sociais que foram uma grande melhoria para a vida da maioria das pessoas. A partir da década de 1970, e cada vez mais desde a época, à medida que avançamos para uma sociedade pós-industrial, a tendência tem sido a busca de interesses individuais e não coletivos e, geralmente, no contexto da economia neoliberal. Estamos vendo agora a dificuldade de manter as demandas cada vez maiores de prosperidade e liberdades individuais, já que a globalização produz muitos vencidos e vencedores, e amplia o abismo entre aqueles que têm e os que não têm. Este, no presente e no futuro previsível, será provavelmente o maior desafio que as sociedades atuais enfrentam e continuará a revelar, como se diz frequentemente, o “gelo fino da civilização”.

DE VOLTA DO INFERNO – EUROPA, 1914-1949

Autor: Ian Kershaw

Tradução: Donaldson M. Garschagen e Renata

Guerra Editora: Companhia das Letras (552 págs., R$ 79,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.