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Longa 'Periscópio' se constrói em torno de um enigma

Longa ‘Periscópio’ se constrói em torno de um enigma Longa ‘Periscópio’ se constrói em torno de um enigma Longa ‘Periscópio’ se constrói em torno de um enigma Longa ‘Periscópio’ se constrói em torno de um enigma

São Paulo – Em um espaço único e fechado – um apartamento -, duas pessoas convivem. São eles um homem de quase 80 anos, Éric (Jean-Claude Bernardet), e outro, Élvio (João Miguel), de uns 40 e poucos. Nada se sabe deles, do seu passado e do seu grau de relacionamento. E este é apenas um dos espaços em branco deixados por Periscópio, novo filme de Kiko Goifman. Sabe-se apenas que os dois não se dão bem. Agridem-se, trocam ironias e insultos. Tudo parece à beira do desastre.

O espectador se pergunta que tipo de relação pode ser aquela. Entre pai e filho? Entre amantes? Ou Élvio não passa de um cuidador do idoso Éric que, ficamos sabendo, perdeu a visão, ou grande parte desse sentido? Em busca de alguma pista, o espectador pode suspeitar de uma referência oculta a O Enfermeiro, famoso conto de Machado de Assis sobre o relacionamento entre um doente agressivo e o profissional que dele se ocupa. Mas pode ser uma falsa pista.

Pelos diálogos, fica-se sabendo que os dois estão sozinhos no edifício. Todos os outros apartamentos estão vazios, ou pelo menos é o que diz um dos personagens ao comentar a mancha de mofo que se forma no teto de um dos quartos.

De repente, algo irrompe. E, nesse caso, é a irrupção do fantástico, a intrusão de algo inusitado e inexplicável no cotidiano rotineiro. Um objeto de metal, que fura o piso e se instala na sala. Tem o formato de um desses respiradouros de navio, ou de um periscópio, como indica o título. Dele, emana uma luz misteriosa. E outros mistérios se escondem por trás dessa luz. O importante é que, a partir do aparecimento do objeto, da “Coisa”, como às vezes um dos personagens se refere a ele, o cotidiano muda, e altera-se, de forma radical, o relacionamento entre os dois homens. O que era soturno, torna-se lúdico. O que era um quase velório, vira festa.

Enfim, há, em Periscópio, menos um enredo que uma proposta de situação – a presença do inesperado como indutor de mudanças radicais. Há menos um sentido do que estímulos para que o próprio espectador construa suas significações. E, se algumas sequências parecem bem soltas (por exemplo, a do banquete), a espinha dorsal do filme parece ter sido pensada com todo fundamento. Aliás, rigor e improviso não são termos excludentes, como sabe qualquer músico ou ouvinte de jazz.

Periscópio não parece tampouco imune a um conjunto de referências, conscientes ou não. Por exemplo, pode-se pensar na situação do apartamento isolado e subitamente invadido como variante temática de A Casa Tomada, o famoso conto de Julio Cortázar. Ou a referência constante ao periscópio como “a Coisa”. No alemão, “das Ding”, com que Freud, em seu Projeto para uma Psicologia Científica (1895, ano da “invenção” do cinema pelos Lumière), designava o irrepresentável. Aquilo que resiste à representação pelas palavras. O termo foi, mais tarde, retomado por Lacan em sua releitura de Freud.

Seja como for, é em torno desse objeto irrepresentável, desse enigma persistente, que palavras e desejos podem se mobilizar. Como dança erótica ao redor do mistério. Sem jamais se esgotar em explicações, Periscópio oferece-se como enigma, objeto lúdico e problema ao espectador. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.