Entretenimento e Cultura

Mergulho nos aspectos cáusticos da humanidade

Mergulho nos aspectos cáusticos da humanidade Mergulho nos aspectos cáusticos da humanidade Mergulho nos aspectos cáusticos da humanidade Mergulho nos aspectos cáusticos da humanidade

A partir do upgrade do sul-coreano Hong Sang-soo (The Woman That Ran) e da americana Eliza Hittman (Never, Rarely, Sometimes, Always), a seleção do novo diretor artístico do Festival de Berlim, o italiano Carlo Chatrian, melhorou bastante.

Da Rússia veio DAU. Natasha, da dupla Ilya Khrzhanovsky e Jekaterina Oertel, que não é só um filme. DAU é uma sigla. Envolve um projeto maior. Ilya e Jekaterina reconstruíram uma vila ucraniana na França e contrataram russos exilados para um experimento.

Na ficção, a protagonista, Natasha, trabalha na cantina de um instituto russo de pesquisa. O local é fechado, mas Natasha adora beber, relacionar-se. Fala de amor, sexo e outros assuntos sem meias medidas. A segurança intervém. Os diretores fizeram um filme radical. Duas horas e meia, cenas longas, não planos-sequência. Há muita violência. A sensação é de medo, insegurança. O horror velado da Rússia de Vladimir Putin, que mereceu um comentário ácido da ex-secretária de Estado Hillary Clinton aqui na Berlinale.

DAU

Natasha não deixa ninguém indiferente. Faz o gênero “ame-o ou odeie-o”. É mais ou menos o que também se pode dizer da nova versão de Berlin Alexanderplatz, pelo cineasta alemão-afegão, de origem étnica hazara, Burhan Qurbani. No começo dos anos 1980, o diretor e ator alemão Rainer Werner Fassbinder, na época com 34 anos e mais de 30 filmes no currículo – Qurbani tem 39 -, tirou do livro cultuado de Alfred Döblin uma monumental série de mais de 15 horas.

Há 40 anos a TV já estava fazendo cinema adulto, não se trata de uma invenção norte-americana, nem da Netflix. Berlin Alexanderplatz é um homem comum que se esforça para ser uma alma honesta na cínica e corrupta Alemanha de Weimar. Qurbani transpôs sua história para a atualidade. Francis, um imigrante africano, sobrevive no mar – a um alto preço. Ao chegar à praia, promete ao bom Deus ser um homem decente, mas liga-se a Reinhard, que será seu lado sombrio. Francis vira Franz, faz carreira na criminalidade e no tráfico, mas sempre sonhando com a salvação da alma.

Qurbani fez um filme de pouco mais de três horas – 183 min. -, dividido em cinco partes, mais um epílogo. Só para efeito de comparação, em Fassbinder eram 14 capítulos. Como no russo DAU. Natasha, não é um filme fácil. Suscita reações extremas – muito bom, péssimo. Na coletiva, foi o filme mais aplaudido até agora.

Num cinema cada vez mais conceitual, o comprometimento de Qurbani é com os personagens. Welket Bunguê faz o imigrante de Guiné-Bissau. Ele próprio também fala o português de Portugal, mas é poliglota, respondendo às perguntas em várias línguas. A danação humana, a droga, a violência.

Fassbinder abordava a nascença do nazismo. Qurbani reflete o mundo atual. Refugiados, imigrantes, exclusão social, drogas. O realismo é visceral, mas boa parte das críticas foi quanto ao tratamento do imigrante negro. Para completar o que para alguns é estereótipo, Francis/Franz, no filme, é uma potência sexual. Esse mergulho nos aspectos mais contraditórios da natureza humana possui uma força, e veracidade, que não podem ser ignoradas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.