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Nos seus 40 anos, 'Uma Literatura nos Trópicos' ganha reedição

Nos seus 40 anos, ‘Uma Literatura nos Trópicos’ ganha reedição Nos seus 40 anos, ‘Uma Literatura nos Trópicos’ ganha reedição Nos seus 40 anos, ‘Uma Literatura nos Trópicos’ ganha reedição Nos seus 40 anos, ‘Uma Literatura nos Trópicos’ ganha reedição

Publicado em 1979, Uma Literatura nos Trópicos reunia uma série de ensaios sobre a cultura latino-americana escritos pelo professor e escritor mineiro Silviano Santiago, depois de uma longa ausência do Brasil, período no qual passou por universidades na França e nos Estados Unidos.

Ao se deparar com o país silenciado pela ditadura militar, Silviano procurou explicar a busca por nossa identidade com o conceito de entre-lugar. Nesta entrevista, o autor do premiado romance Machado (2017), hoje com 82 anos, volta à obra que agora completa 40 anos e marcou os estudos universitários brasileiros. À reedição, agora pela Cepe Editora, foram acrescentados textos sobre Iracema, de José de Alencar, e A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

Quatro décadas depois da publicação de Uma Literatura nos Trópicos, cuja ideia central é o conceito de entre-lugar na cultura latino-americana, continuamos a nos deparar com questões muito semelhantes com as examinadas pelo senhor. Para a reedição da obra, o senhor teve de voltar a ela. Como foi esse retorno?

O entre-lugar, antes de ser um conceito, é uma ferramenta de trabalho ativada pela força desconstrutora que a noção de diferença trouxe para o pensamento filosófico contemporâneo. A diferença é que revela nossa singularidade de intelectual e de artista do Novo Mundo. Nossa singularidade não está na pureza greco-latina ou europeia, forçada goela abaixo pela escola autocrática. O entre-lugar me foi instruído pela leitura do capítulo 31 dos Ensaios, de Montaigne, intitulado Sobre os Canibais. Os canibais não se comportam como se espera e se diz, é a lição revolucionária de Montaigne. O filósofo abre para nós, latino-americanos, um espaço entre. Esse espaço é físico, humano e intelectual e terá de ser preenchido por nós. Dentro do entre, isto é, na barra que separa dentro/fora do Ocidente, é que pensamos e atuamos. Para que tal tarefa seja possível, temos de trabalhar de modo adequado e inequívoco a diferença. O entre-lugar é o lugar do outro, que nos coloniza, e é, deve ser o nosso lugar, onde desconstruímos o legado europeu para afirmar nossa singularidade. Nada idealizado, tudo muito pragmático.

E a ferramenta de leitura ainda é atual?

Sim. Pelo uso dela, podemos indiciar, por exemplo, o equívoco de um chanceler que exclui textos latino-americanos dos futuros diplomatas brasileiros. Se em Montaigne está a necessidade de se pensar a diferença, lá está também o dilema que, por sua vez, gera o multiculturalismo. Sem Montaigne, o estudioso americano voltaria a ser apenas uma máquina repetidora, meramente reprodutora e nossa criação seria eternamente uma cópia. Montaigne nos leva a colocar uma pergunta: onde você vive, lê, pensa e escreve? Que contribuição original você, pensador e artista latino-americano, dá a conhecer nesse entre-lugar de ser, de ler, de reflexão e de escrita? No ensaio Eça, autor de Madame Bovary, o potencial de leitura de O Primo Basílio é formidável e pode nos levar a “reler” Flaubert com olhos diferentes. Para ler o modernista Carlos Drummond, retomo um tópos renascentista camoniano, “a máquina do mundo”. Na verdade, ao ler Claro Enigma, releio Os Lusíadas. A literatura brasileira só é verdadeiramente comparada, ou seja, universal, no momento em que o crítico questiona “a fonte” europeia e a “imitação” dos latino-americanos com a ferramenta chamada entre-lugar.

E Machado de Assis como entra nessa dança?

Nesse contexto, Dom Casmurro marca o fim da linha flaubertiana. Pela narrativa de Machado ser de responsabilidade do marido, e não de uma terceira pessoa anônima e dita objetiva, ele desloca a questão da traição da esposa para focar o possessivo ciúme masculino. Este é o construtor da infidelidade feminina. É o ciúme que inventa um amante para a esposa. A infidelidade é, paradoxalmente, obra do marido. Machado escancara algo que os dois romancistas europeus não conseguem escancarar. O nó no relacionamento amoroso está na “liberação”, pela mulher, do jugo machista. A atitude feminina se torna desejável porque Machado é o único dos três romancistas em questão que desconstrói a autoridade do discurso masculino no romance do século 19. Ele anuncia os movimentos de autonomia identitária, entre eles o da mulher, que, no século passado e neste, pipocam no mundo. Machistas empedernidos como Otto Lara Resende e Dalton Trevisan bem que quiseram reafirmar a verdade absoluta do discurso masculino. Eles representam o último suspiro nos trópicos do imenso Flaubert.

Como se aplica a teoria na sua leitura de Machado de Assis?

Em Machado de Assis, a desconstrução do discurso autoritário, masculino e burguês, enfrenta os dois principais pilares da formação educacional e moral de Bentinho e, por extensão, do letrado brasileiro no século 19. Bentinho é ex-seminarista e advogado. O leitor pode desconstruir a visão de mundo dele, sua retórica e sua atuação, pelo conhecimento do modo como se introduz no pensamento ocidental não a busca da “verdade”, mas o primado da “verossimilhança”. Os biógrafos de Machado insistem no fato de que ele era leitor e admirador de Pascal e de Platão. É Pascal quem relata a famosa querela entre jesuítas e jansenistas. Estes castigam sem clemência a casuística dos primeiros através do que se chama o “pro¬ba¬bi¬lis¬mo”, ou seja, “a doutrina das opiniões prováveis”. A palavra provável, como nos ensinam os teólogos, guarda o sentido eti¬mo¬ló¬gi¬co, que é o equivalente perfeito do “verossímil” em retórica. A Pascal some-se o Fedro, de Platão, diálogo de leitura obrigatória dos juristas. Ali, se chama a atenção para a diferença entre “persuadir” e “dizer a verdade”. A persuasão é arma retórica e escamoteia – pela verossimilhança – a busca da verdade. O advogado de defesa e o de acusação – ambos se valem da mesma retórica da verossimilhança para persuadir o jurado/juiz que o réu é inocente ou culpado. Quem melhor trabalha a retórica persuade. Vence. Teria dito a verdade? Não. Não é, pois, por casualidade que o narrador de Dom Casmurro seja seu próprio advogado de defesa e de acusação de Capitu. A culpa não se casa com o remorso. Casa-se com a mentira.

O tópico da verossimilhança tem algo a ver com o discurso político nos dias de hoje?

Claro. Ler Machado de Assis é o melhor antídoto contra as fake news, de que se tornou principal ator e divulgador o presidente Donald Trump. Não estou dizendo novidade, está no New York Times. Está também no primeiro romance publicado por Machado de Assis, Ressurreição (1872). O apaixonado por Lívia sabe que a carta que denuncia a infidelidade da noiva é falsa, mas mesmo assim não muda a opinião sobre a futura esposa. Rompe o noivado. A carta falsa é fake news, mas isso não importa para o machista preconceituoso. Importa é despertar a desconfiança sobre a noiva, ou sobre o político democrata. Despertar a desconfiança é jogo retórico. A imprensa vem reclamando dos eleitores a incapacidade que têm de aquilatar, pelo conhecimento dos fatos, pela busca da verdade, os mandos e desmandos retóricos do presidente americano.

UMA LITERATURA NOS TRÓPICOS

Autor: Silviano Santiago

Editora: Cepe (369 págs., R$ 60)

*ANDRÉ NIGRI É JORNALISTA E AUTOR DO ROMANCE ‘PARALISIA’ (2018)

*JOÃO POMBO BARILE É JORNALISTA E REDATOR DO ‘SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS’

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.